Eduardo Hoornaert, 30/10/17
Escrever sobre o ato conjugal (e aqui uso a expressão num sentido biológico, sem conotações de ordem moral) é coisa delicada. Pois o sexo, que mexe com a vida da maioria dos indivíduos, fica por assim dizer ‘protegido’ por um sentimento de pudor, algo que se verifica em todos os povos e constitui um tabu que só pode ser rompido em determinadas circunstâncias.
Em quase todas as sociedades humanas, pornografia e exibicionismo são rejeitados.
O ato conjugal não é para ser exibido ‘em cena’. Ele é ‘obsceno’ (do latim: ‘ob- ou ab-scaena’: ‘fora do palco’). É praticado em lugares ocultos ou quartos fechados.
Mesmo assim, como está na origem da vida humana, ele merece uma consideração teológica, à qual pretendo aqui colaborar trazendo alguns elementos de ordem histórica.
1. Poucos teólogos abordam o ato conjugal em si.
Temos de cavar fundo na tradição cristã para encontrar uma abordagem do ato conjugal em si, despojada de considerações morais. É preciso voltar ao início do século III para encontrar o surpreendente Comentário ao Cântico dos Cânticos, da autoria do teólogo alexandrino Orígenes, um texto em que se afirma sem mais nem menos que Deus se revela no ato conjugal. Simplesmente, naturalmente.
- costuma falar de improviso em comunidades de analfabetos
- e comenta os textos bíblicos com impressionante fluência e rapidez,
- seus amigos resolvem colocar à sua disposição diversos estenógrafos
- a anotar minuciosamente suas preciosas palavras,
como testemunha um de seus discípulos mais entusiasmados, Gregório o Taumaturgo.
Por isso seus escritos (ou anotações de suas falas feitas por copistas) enchem tantos volumes nas bibliotecas especializadas. Aí o curioso encontrará textos repetitivos e acúmulos de citações bíblicas. Ele ficará impressionado com o ritmo lento nas interpretações. Ler Orígenes é uma experiência, pois há pepitas de ouro escondidas no acúmulo das palavras.
2. Orígenes e a ‘leitura grega’ da Bíblia.
O valor histórico de Orígenes consiste principalmente no fato que
- ele toma distância diante da ‘leitura grega’ da Bíblia,
- que a partir do século III penetra poderosamente na tradição cristã
- e com o tempo se torna quase exclusiva entre os Padres da Igreja, que são os intelectuais cristãos do primeiro milênio.
- a falta de motivação para viver,
- o sentimento de vazio,
- o fechamento de cidadãos bem situados diante do universo escravo em que vivem imersos.
- ‘abjeção da carne’ (leia: abandono de questões sociais e corporais), e a ‘elevação do espírito’.
- Desprezar o ‘mundo’ e se comunicar com o ‘céu’,
- elevar-se da base corporal em direção ao universo espiritual.
- aversão ao mundo ‘material’, ou seja, ao mundo dos cinco sentidos do corpo,
- e na adesão ao mundo ‘espiritual’.
Só ‘mortificando’ os sentidos do corpo, a pessoa consegue se libertar da ‘carne’ e chegar ao êxtase, que é considerada o ápice da realização humana.
- entre o espiritual e o carnal,
- entre a ‘alma’ e o ‘corpo’ (no sentido dado a esses termos por Platão).
Essa leitura tem, para muitos intelectuais cristãos, o charme da ‘modernidade’.
- a ‘nova teologia’, revestida do prestígio que desfruta a cultura helenística,
- despoja o cristianismo do que tem de mais precioso: a mensagem evangélica, resolutamente voltada para a transformação da sociedade em benefício dos mais fracos, ou seja, da ‘carne’.
- um Deus que‘toma partido’,
- que se torna ‘carne’,
- um Deus comprometido com a sorte dos humildes e marginalizados.
Ao contrário de Clemente, Orígenes não embarca na ideia de uma ‘espiritualização’ do mundo e, portanto, não adota a ideia neoplatônica da cesura entre o universo dos sentidos e o mundo das ideias.
3. O corpo é a morada de Deus.
- ‘o templo do Espírito Santo’,
- o ‘tabernáculo santificado do Senhor’,
- o ‘membro do corpo de Cristo’.
O cristão dispensa o templo, ‘feito pela mão do homem’ e vê Deus em seu próprio corpo. Aqui reencontramos o embate com o neo-platonismo. Quando Celso afirma que Deus mora no templo, ele se mostra influenciado pelas ideias gregas (platônicas) da espiritualização. O templo seria um lugar santo em meio a um mundo perverso. Orígenes, com a segurança que lhe proporcionam suas leituras bíblicas,
- se distancia das ideias gregas em circulação
- e constrói uma antropologia cristã baseada na tradição semita, tal qual vai expressa nos textos bíblicos.
4. Basar e nefesh.
- ‘corpo’,
- ‘pele’,
- ‘carne para consumo’,
- ‘consanguinidade’,
- ‘parentesco’.
Contrariamente ao termo nefesh (que explico adiante), basar designa o mundo animal, especificamente o mundo humano. Nunca é aplicado a Deus. O termo acentua os aspectos frágeis, provisórios e vulneráveis da natureza humana, sujeita a doença, sofrimento, infortúnios e morte. Mas não emite julgamento negativo.
O basar existe unido ao nefesh, um termo que igualmente possui um amplo leque de significados:
- ‘vida,
- respiração,
- perfume,
- cheiro,
- desejo,
- força,
- vitalidade’.
Expressa, em suma, o fator dinâmico da natureza humana. A Setenta traduz o termo por ‘psuchè’, a Vulgata por ‘anima’ e as línguas modernas por ‘alma, âme, soul, Seele’.
Aqui estamos diante do ponto central a ser esclarecido, pois existe muita confusão na mente dos leitores da Bíblia em torno do termo ‘alma’. O que hoje entendemos por ‘alma’ nem sempre traduz bem o sentido original semita de nefesh, que
- designa aspectos do ser humano não contemplados pelo termo basar,
- mas que não necessariamente são ‘espirituais’ no sentido que hoje damos a esse vocábulo.
Principalmente, não existe dualismo entre os dois componentes:O ser humano é ao mesmo tempo basar e nefesh. Um fato que já descaminhou muitos teólogos consiste no fato que a Setenta traduz 700 vezes nefesh por ‘psuchè’ (entre 754 ocorrências na Bíblia). Se o leitor da Bíblia não prestar atenção, ele corre o perigo de, ao encontrar nos textos o termo ‘psuchè’ (alma), pensar logo na oposiçãoentre
- espiritualidade e materialidade,
- corpo e alma,
- segundo os ditames da filosofia platônica.
Em outras palavras:
- não se pode traduzir nefesh por ‘alma, âme, soul, Seele’,
- sem verificar com cuidado o sentido da frase bíblica em seu conjunto.
O importante, para quem quer quiser ler a Bíblia corretamente nos dias de hoje, consiste em contextualizar, ou seja, em obedecer ao ‘princípio do contexto’.
Nefesh pode significar
- garganta (órgão de fome e sede),
- canal de respiração,
- força de vida (quando Raquel morre, seu nefesh sai dela: Gn 36, 18),
- a respiração difícil da mulher em trabalhos de parto (Jr 4, 31),
- o desejo de pão ou uvas,
- o desejo sexual.
Fome, sede, sofrimento, desejo (sexual e outro), respiração, alimentação, tudo é atribuído ao nefesh. Enfim, todo cuidado é pouco quando o leitor se depara com as palavras ‘alma’ e ‘corpo’. Pois nós não somos hebreus nem pertencemos à antiga cultura semita.
5. O ato conjugal no Cântico dos Cânticos.
- nos sentidos aguçados pelo desejo sexual,
- nas angústias e expetativas do corpo namorado.
Aqui, na breve apresentação desse texto, sigo o comentário feito pelo saudoso biblista Milton Schwantes, intitulado ‘Debaixo da Macieira’ e publicado em: Cântico dos Cânticos, Estudos Bíblicos, 40, Vozes, 1993.
6. A transcendência do ato conjugal.
- Se o corpo é a morada de Deus
- e se o nefesh provoca a atração entre homem e mulher,
- então convém dizer que Deus se manifesta no ato conjugal.
O desejo humano, origem do ato conjugal, é o desejo de Deus. Aqui se supera a distinção neoplatôncia entre caridade (‘charis’, ‘agapé’) e amor erótico (‘eros’). Eros e agapè se abraçam no ato conjugal.
7. Declínio da teologia ocidental.
- O primeiro é condenado pela autoridade eclesiástica em 533;
- o segundo, que defendera a separação entre igreja e estado, é abandonado em 381, quando o cristianismo é declarado religião do estado romano;
- o livre ímpeto monástico do terceiro sofre os efeitos de uma progressiva institucionalização e burocratização do monaquismo;
- as ideias do último (Agostinho), um pensador complexo e revelador da complexidade humana, sofrem igualmente uma vulgarização, sendo que ele passa a ser apresentado como defensor de uma moral anti-sexual e de uma pastoral do medo.
Com o ocaso do pensamento original desses quatro grandes nomes, a teologia penetra numa era de mesmices,
- citações ‘ex auctoritate’
- e principalmente alinhamento com o poder pastoral vigente.
Reina o princípio de obediência, como bem observou Spinoza:
- se inicia nas grandes cidades do Império Romano, como Alexandria, Constantinopla e Roma,
- e se alastra pelo mundo rural das aldeias por meio do sistema paroquial.
Os teólogos não entendem mais o hebraico e deixam de interpretar as Escrituras segundo métodos linguísticos, como ainda faz Orígenes.
- Há um empobrecimento intelectual generalizado, uma vulgarização que atinge setores sempre mais amplos do universo cristão.
- Não se compreende mais como o celibato pode conviver com uma visão positiva da sexualidade.
- Não se relaciona mais celibato com liberdade.
Como nos lembra o historiador Peter Brown,
‘rejeitar a sexualidade não significa, nos primeiros tempos do cristianismo, simplesmente eliminar os impulsos sexuais. Significa a afirmação de
- uma liberdade fundamental tão intensa,
- um sentimento de identidade tão profundamente enraizado,
- que se evaporam as obrigações sociais e físicas normais que prendem a pessoa ao seu sexo’ (Brown, P., Corpo e Sociedade: o Homem, a Mulher e a Renúncia sexual no Início do Cristianismo, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1990, 149-150).
Hoje fica claro que a decisão do II Concílio de Constantinopla, em 533, no sentido de condenar Orígenes, foi um equívoco. O exegeta minucioso, o intelectual honesto e rigoroso, o homem livre foi rejeitado em benefício de conveniências organizatórias.
8. ‘Minha mãe me concebeu no pecado’?
- Será que tudo isso são águas passadas?
- Será que o atual desempenho dos casais na hora do encontro conjugal não tem mais nada a ver com essa história de repressão sexual no passado?
- Será que o versículo bíblico ‘minha mãe me concebeu no pecado’ (Salmo 51, 7) não ressoa mais no subconsciente dos casais de hoje?
Na TV aparecem atrativos beijos midiáticos, mas só raras estatísticas mencionam o que costuma acontecer mesmo entre as quatro paredes do quarto do casal.
O médico Drauzio Varella, cujo site você consegue facilmente na Internet, informa que estudos realizados pelo ProSex, Projeto de Sexualidade do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo, permitem identificar três tipos principais de queixas relativas ao encontro conjugal, por parte de mulheres:
- falta de desejo,
- incapacidade de atingir o orgasmo
- e dor durante a relação.
Eduardo Hoornaert
Teólogo, filósofo, professor universitário, historiador, escritor com mais de 20 títulos publicados, padre casado. Mora em Salvador
Fonte: http://eduardohoornaert.blogspot.com/2017/10/a-transcendencia-do-ato-conjugal.html
Deus Diz Basta! Fim do Celibato Obrigatório na ICAR Já!
Porque a sexualidade é sacrossanta!
https://deusdizbasta.blogspot.pt/
Bom dia, meu caro João.
Obrigado pelos textos que você tem enviado. Eles são ótima fonte de reflexão.
Nossa Associação de Padres Casados da Campanha está bem.
Não somos muitos, mas estamos firmes na fraternidade, no cuidado com os outros e na esperança de novos tempos na Igreja, sob inspiração do Espírito e liderados pela coragem de Francisco.
Estamos à disposição.