A imagem original, de 1717, antes do atentado de 1978: Uma mulher negra, cheia de curvas, toda enfeitada, com um olhar sem culpas, uma boca que se entreabre num sorriso nada “angelical”.

Mauro Lopes – 11/10/2017
Vamos despir Maria, a Nossa Senhora Aparecida, de seu manto azul? Examinemos a imagem original, encontrada no Rio Paraíba há 300 anos, antes do atentado de 1978, que espatifou sua cabeça e partiu-lhe o corpo em pedaços.
Que imagem revela-se a nós?
- Uma mulher negra,
- cheia de curvas,
- toda enfeitada,
- com um olhar sem culpas,
- uma boca que se entreabre num sorriso nada “angelical”.
A imagem de Aparecida é como a de outras representações de Maria na América Latina, uma figura apropriada pelo povo, pela religiosidade popular, que afronta e confronta o catolicismo romano marcado pela rigidez e distanciamento. A imagem original, portuguesa barroca,
- ao ficar na lama do rio
- agregou às ousadias do escultor (as formas e o riso) a negritude,
- que se acentuou com a fuligem das velas ao redor ao longo do anos.
Quem é Maria? Você não pode deixar de assistir o documentário Marias, a fé do feminino, de 2016, dirigido por Joana Mariani. Ela escavou fundo na devoção popular às padroeiras de quatro países da região, a
- Maria de Aparecida,
- de Guadalupe (México),
- das Mercês (Peru),
- do Cobre (Cuba)
- e La Puríssima (Nicarágua).
A resposta sobre Maria aparece no depoimento de uma mulher do povo, devota da Nessa Senhora Aparecida, logo na abertura do trailer do filme; com sua fala, ela derruba todo o império dogmático e esvaziado de sentido sobre a mãe de Jesus:
“Maria somos todas nós. Maria
- é essa mulher que tá no morro,
- que tem seus filhos,
- o marido abandona
- e ela cria esses filhos.
- E ela vai buscar outro parceiro.
- E ela tem o sorriso”.
Veja o trailer e se puder todo o documentário, que está disponível no Netflix ou no YouTube (é baratinho, R$ 3,90 –aqui o link).
O que se aprendeu sobre Maria, a partir do pensamento conservador católico?
- Que ela é “pura” (branca),
- sempre virgem,
- entronizada nos altares (portanto, distante das pessoas),
- condescendente e recolhida em sua castidade,
- trancada em casa,
- absorta em seu silêncio e ensimesmamento.
Toda essa construção é uma deturpação da originalidade do cristianismo.
Vai-se ao Novo Testamento e lá está Maria pé na estrada
- para socorrer a prima Isabel e proclamar a vitória dos pobres e a derrota dos ricos,
- nas festas com Jesus e sua turma (as famosas bodas de Caná),
- pelas estradas com o grupo de discípulos,
- confrontando o Império Romano aos pés da cruz,
- inserida na primeira comunidade cristã.
Uma pedra fundamental no edifício conservador que buscou sequestrar Maria do povo é o mito sobre sua virgindade. Escrevi sobre isso recentemente (aqui). A ideia de que Jesus teria nascido sem que sua mãe tivesse feito sexo com um homem contradiz o pilar fundamental do cristianismo, segundo a qual Jesus é totalmente Deus e totalmente homem. Este pilar foi assentado no Concílio de Calcedônia, em 451. Os padres conciliares afirmaram textualmente: “Devemos confessar que nosso Senhor Jesus Cristo é um único e o mesmo Filho (…) perfeito na divindade (…) perfeito na humanidade”.
A imagem original, de 1717, antes do atentado de 1978: Uma mulher negra, cheia de curvas, toda enfeitada, com um olhar sem culpas, uma boca que se entreabre num sorriso nada “angelical”.
Ora, como é possível que alguém totalmente humano possa nascer fora do universo das relações humanas? A tese da virgindade eterna de Maria, que ganhou força mil anos depois de Calcedônia, para contrapor-se à Reforma,
- é um absurdo completo
- e aproximou o catolicismo do paganismo e da mitologia grega.
- Jesus seria alguém como Afrodite, gerada da espuma do mar.
A ortodoxia cristã afirma que Jesus revelou o máximo de sua divindade em sua humanidade integral. A fé da Igreja afirma que Jesus era em tudo humano, exceto no pecado –a dogmática conservadora, com a tese da virgindade de Maria, buscou
- tornar a relação sexual, o prazer e o gozo em “pecados”,
- para melhor controlar o povo.
Mas Maria, na América Latina, desceu dos altares em que foi aprisionada pelo conservadorismo para misturar-se e andar no meio do povo.
É a Maria de Aparecida negra, cheia de curvas, sorridente, enfeitada que chega aos seus 300 anos. Mas nem sempre foi assim. O conservadorismo católico de fundo racista, a serviço da elite escravocrata brasileira, tentou embranquecer Maria de Aparecida durante séculos.
Veja as imagens de Nossa Senhora Aparecida do final do século XIX e da primeira metade do século XX logo abaixo. Branquinha!
- À esquerda, a primeira estampa oficial da imagem de N. S. Aparecida, impressa na França em 1854;
- ao centro, a primeira estampa oficial em formato de cromo, que sugere sua difusão em maior escala;
- à direita, detalhe de cartaz de 1929.
Vale a pena ler o livro de Lourival dos Santos (O enegrecimento da Padroeira do Brasil: religião, racismo e identidade -1854-2004), cuja versão digital está disponível aqui e de quem tomei as imagens acima.
Há uma construção do embranquecimento e depois do enegrecimento de Nossa Senhora de Aparecida. Mesmo depois de ser reconhecida como negra pelo catolicismo rigorista, a partir dos anos de 1970, em especial depois da restauração da imagem destroçada em 1978, a cor de sua pela continuou
- um tabu,
- um detalhe,
- um instrumento da tese do Brasil “miscigenado” e “cordial”
- e ignorada nos hinos, na liturgia.
Lourival dos Santos atesta:
“Foi apenas sob os auspícios da teologia da libertação que a padroeira enegreceu definitivamente nos cânticos e invocações” (p 19).
Foi a teologia latino-americana
- em seu mergulho na vida,
- em seu projeto de inculturação,
- em sua sensibilidade ao catolicismo popular,
que resgatou para o interior das formulações conceituais a Maria branquinha e assexuada dos altares conservadores.
É a Maria de Aparecida negra, cheia de graça, plena de raça, de luta, de sexualidade e desejo de vida abundante que chega aos 300 anos.
Ave Maria, Axé padroeira dos pobres do Brasil!
Mauro Lopes
Obrigada por esta partilha!
Fiquei tocada com esta mensagem. Todas somos mulheres e aceitar-nos como parte do divino é um acolhimento muito grande que foi negado a muitas mulheres e a muitas expressões de ser mulher.
Esta mulher alegrou-se com esta Maria latina, mulher assumida e com vida.