1. O princípio violência.
Seis séculos antes de Cristo, o filósofo grego Heráclito erige a violência como princípio fundante da sociedade humana. Baseado no pressuposto de que ‘tudo flui e nada fica’ (o famoso dito grego ‘panta rhei’), ele afirma que o ‘fluxo’ entre opostos faz a história, pois cria uma harmonia sempre provisória e passageira, que há de ser periodicamente restabelecida por um novo confronto entre opostos. Daí a necessidade da guerra. Heráclito escreve: ‘A guerra é mãe de tudo’ (a expressão soa bem mais forte em grego:‘polemos patèr pantôn’).
O filósofo martela essa ideia sinistra na mente de seus discípulos ao afirmar que não há como escapar da dura realidade: a guerra é a rainha soberana do mundo. Ela ‘faz com que uns se tornem livres e outros escravos’. Uns constroem e outros desconstroem. O processo histórico é feito de oposições. O que aparece como estável é na realidade uma ilusória e provisória harmonia entre opostos. Na realidade, a luta faz história, ela produz a justiça, ou seja, o que as pessoas consideram como sendo justo.
A filosofia sombria de Heráclito encontra ampla confirmação na história. Quem estuda história sabe que – pelo menos desde a revolução neolítica – a espiral guerreira nunca foi interrompida. A história política que aprendemos na escola é uma concatenação de relatos
- sobre guerras,
- dinastias,
- estados
- e impérios
construídos por meio de violência.
- ódio,
- amargura,
- aversão
- e rejeição,
criados por longos anos de sofrimento, e prefere manter uma divisão da nação que já dura mais de 50 anos.
- das lágrimas das mulheres,
- do choro das crianças,
- do desespero de quem perdeu tudo na guerra,
- igualmente da pobreza que afeta a maioria da humanidade,
para fixar o olhar em Sua Eminência a Guerra, a mandona do mundo.
Toda e qualquer civilização tem sua origem na guerra, no ferro e no fogo: as cidades, os países, as famílias, as propriedades, os ‘negócios’, as corporações, a vida social enfim. A guerra cria as civilizações.
- Os teólogos medievais seguem a doutrina da ‘guerra justa’ ao justificar o projeto das Cruzadas contra o Islã.
- Nos tempos modernos, a filosofia do antigo filósofo grego se seculariza, como se pode verificar no escrito ‘De Iure Belli et Pacis’(‘sobre o Direito de Guerra e Paz), de Hugo Grotius (1625).
- Através de Tomás Hobbes e John Locke, ela desemboca nas terríveis ideologias do século XX como o nazismo, o estalinismo, o franquismo, o salazarismo, etc., cujos germes, neste início do século XXI, continuam vivas. Os gritos ‘guerra nunca mais’ são abafados pelo pragmatismo político reinante. O princípio violência é mais atual que nunca.
2. O princípio esperança.
- o Paraíso dos primeiros capítulos do Livro Gênesis,
- a Atlântida de Platão,
- a República do mesmo filósofo,
- o Reino da Justiça de Aristóteles,
- a Cidade de Deus de Agostinho,
- a Hierarquia Celeste de Dionísio o Areopagita,
- o Regime dos Príncipes do século XVI,
- a Sociedade Perfeita no Decreto de Graciano (século XIV),
- o Mosteiro na ideia dos Cistercienses,
- a Paz universal de Raimundo Lullo (1235-1316),
- a Cidade das Damas de Christine de Pisan (1405),
- as Beguinas,
- os Goliardos,
- o Decameron de Boccacio (1450-1475),
- o País de Cocanha,
- a Ilha Utopia de Tomás Morus (1516),
- o Novo Mundo na mente dos ‘descobridores’,
- a América ‘anterior ao pecado’,
- a Terra incógnita,
- a Cidade do Sol de Campanella (1602),
- a Nova Atlântida de Francis Bacon (1627),
- a Renovatio Mundi,
- a Reforma,
- a Revolução,
- o Socialismo,
- a Comuna de Paris,
- a Revolução soviética,
- a Idade de Ouro,
- o Tempo da Inocência,
- o Olimpo,
- a Árvore do Paraíso,
- o Éden,
- o Evangelho,
- a Jerusalém Celeste,
- as Ilhas Afortunadas,
- o Reino do Preste João,
- a Terra Prometida dos Livros de Josué,
- o Lugar Santo, o Santuário,
- a Ilha de São Brandão,
- a Eneida,
- as Árvores do Sol e da Lua,
- a Profecia de Ezequiel,
- a Apocalipse,
- os Mil Anos de Felicidade,
- as Chaves do Reino,
- o Trono de Deus,
- o Reino do Espírito (Joaquim de Fiore),
- o Santo Padre,
- o Tabor.
A lista é interminável, sendo apenas uma amostra do fluxo interminável de imagens que expressam
- esperança,
- tempos melhores
- e felicidade de difícil alcance.
E observe que só apresento aqui relatos escritos da cultura ocidental e nem entro
- na cultura popular,
- nas culturas antigas da América (a Terra Sem Males da cultura tupi-guarani, etc.),
- nem nas riquezas do imaginário asiático.
- a imagem do Deus no Trono Celeste, que ordena a guerra,
- do Deus Tseav’ot (Deus dos exércitos) dos nacionalistas
- e do Deus ‘ofendido’ (segundo a teoria sacrificial de Anselmo de Cantuária, teólogo do século XI).
Relativa é a liturgia que insiste no sacrificialismo e carrega consigo resíduos ocultamente guerreiros, relativos a sentimentos de culpabilidade difusa diante de um Deus vingativo, que ameaça vingar-se da ofensa sofrida pelo pecado do homem por meio de
- calamidades,
- doenças
- e infortúnios.
- Um Deus que, em última análise, retribui a violência do pecado pela violência do castigo.
Felizmente, hoje surgem liturgias que substituem o ‘céu do trono divino’, ofendido pelo pecado, pela ´terra prometida’.
- o Deus salvador da antiga teologia,
- mas o Deus vítima da violência. A
- A imagem de Jesus na cruz é a imagem da esperança para além das forças da violência.
3. O princípio ‘não-violência ativa’.
- quando, em 1969, o jovem sacerdote Henrique Pereira Neto, colaborador do bispo, foi assassinado pelo regime militar
- e sobretudo quando, após uma conferência em Paris, (1971), na qual ele denunciava abertamente o regime de torturas e mortes vigente no Brasil, Hélder Câmara foi totalmente silenciado pelo regime (‘não se fale mais dele, nem contra nem a favor!’), eu me convenci que ele tem realmente a estatura de um profeta de nossos tempos e merece figurar ao lado de Gandhi, Martin Luther King e (mais tarde) Mandela.
Pois ele tem um ponto em que ultrapassa essas três figuras paradigmáticas: desenvolve a teoria do ‘espiral da violência’.
É verdade:
- Gandhi contestou o colonialismo,
- Martin Luther King a discriminação dos negros
- e Mandela o ‘apartheid’,
mas Helder Câmara traça um desenho mais profundo ao analisar a dinâmica mortal do princípio violência.
No livro que lançou na França em 1970, intitulado ‘Spirale de la Violence’ (Desclée de Brouwer, Paris), ele mostrou a razão pela qual o princípio violência nos introduz num labirinto do qual não se consegue mais sair.
É que a violência procede em três fases, ou seja, se apresenta como a imbricação de três movimentos distintos.
A violência número um se origina na situação de
- injustiça,
- pobreza
- e marginalização, em que grande parte da humanidade vive.
É a violência institucionalizada.
Ela gera a violência número dois, que consiste na revolta contra essa situação desumana. É a violência revoltosa.
Essa, por sua vez, desemboca na violência número três, a da repressão da revolta em nome da ‘ordem’. É a violência repressiva.
A imbricação dessas três fases da violência cria uma espiral sem fim, sem perspectiva além de uma paz precária e temporária a ser seguida por um novo ciclo violento, exatamente na linha da interpretação do filósofo grego Heráclito. Ao descrever essas três fases, Helder Câmara contesta a comum compreensão de termos como ‘ordem’ e ‘paz’.
Desde os teólogos escolásticos, a Igreja ensina que a paz consiste na ‘tranquilidade da ordem’ (tranquilitas ordinis). Nisso, ela repete a seu modo a definição que os administradores do Império Romano davam à famosa ‘Paz Romana’, que consistia na afirmação seguinte: as províncias conquistadas pelas legiões romanas estão ‘em paz’. O intento fundamental dessas legiões consiste em estabelecer a paz no mundo inteiro, enquanto a tarefa principal do Imperador consiste em defender a paz. Ele é o principal defensor da paz (defensor pacis).
Não é difícil perceber que tanto a Pax Romana como a Pax Clericalis têm seu fundamento no silêncio das massas populares.
A ‘tranquilidade da ordem’ é uma expressão enganosa. Helder Câmara conhecia suficientemente a situação da população pobre do Nordeste brasileiro para poder dizer, em repetidas ocasiões, que a paz reinante é a ‘paz dos túmulos’. Não há lugar mais pacificado que um túmulo. Ali ninguém fala, tudo ‘repousa em paz’. A paz é uma desordem instituída e mantida por palavras enganosas.
- em primeiro lugar, rechaça incondicionalmente o princípio violência
- e, em segundo lugar, segue não menos incondicionalmente o princípio esperança, que ativa e concretiza.
- é a guerra que não resolve nada,
- apenas gera inúmeros sofrimentos
- e acaba recolocando os poderosos no comando.
- As FARCs, responsáveis por 12 % das mortalidades violentas,
- provocam o surgimento dos paramilitares, que por sua vez são responsáveis por 80 % dessas mortes.
- E assim se desenrola a espiral da violência sem fim.
É dentro desse contexto que o Papa Francisco reúne vítimas e vitimários, numa tentativa de ativar nelas (e em todos nós) o princípio evangélico da não-violência ativa. Será que ele conseguirá convencer um contingente suficiente de pessoas para que finalmente um referendo nacional acerca da rejeição da violência institucionalizada seja bem-sucedido na Colômbia?
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