“Aqui nem os pastores reconhecem suas ovelhas, nem estas escutam os seus pastores”
Numa Molina – 17 Abril 2017
Foto: O jesuita venezulano Numa Molina – Periodistadigital
“Na Venezuela está em jogo a luta de um povo que há 18 anos decidiu emancipar-se do bipartidarismo perverso que havia lhe imergido no esquecimento, e esta luta lhe custou sangue e vidas de homens e mulheres das camadas populares”, escreve Numa Molina, SJ, em artigo publicado por Religión Digital, 16-04-2017. A tradução é de Henrique Denis Lucas.
“Portanto, diante da repressão desproporcional e exagerada que tem ocorrido contra as manifestações pacíficas do povo, nos últimos dias, peço ao Governo: cessem a repressão! Os cristãos são e devem sempre ser um povo de paz. Somos convocados a respeitar e defender os direitos humanos: sejam eles os nossos próprios, sejam os dos outros”. Cardeal Jorge Urosa Savino.
Esta foi a citação que animou o povo durante a grande celebração que é tradicionalmente feita na Quarta-feira da Semana Santa pelos habitantes de Caracas, para adorar Jesus, o Nazareno de São Paulo.
Para tornar minha análise mais compreensiva quero antes afirmar que
a maioria dos venezuelanos chavistas
- é católica,
- pertencem às camadas humildes da sociedade
- e são aqueles que mais foram beneficiados pela Revolução.
Mas este povo já está cansado da falta de respeito e objetividade da instituição eclesiástica na hora de expressar as suas opiniões sobre o governo.
Os bispos venezuelanos
- são carentes de um olhar imparcial sobre o que acontece no país,
- pois eles aparentam se inteirar da realidade apenas pelos meios de comunicação privados,que são nitidamente de direita.
- Seu discurso ainda é identificado com grupos que promovem a violência no país.
E foi nesta linha que eles emitiram um comunicado para ser lido em todas as igrejas no domingo de Ramos:
“É hora de perguntar-se de maneira muito séria e responsável se não é válido e adequado, por exemplo, considerar a desobediência civil, as manifestações pacíficas, as reclamações justas aos poderes públicos nacionais e/ou internacionais e os protestos cívicos”.
No texto, eles sugerem a desobediência civil e as manifestações de rua como uma alternativa. Estas são palavras que causam preocupação e medo aos venezuelanos, pois já sabemos os resultados de quando a direita convocou manifestações: 11 mortos em abril de 2013, 43 entre fevereiro e maio de 2014, com mais de 800 feridos e cerca de 300 que hoje estão incapacitados. Além disso, o maior número de vítimas está sempre entre os setores mais vulneráveis.
Dizer que estas marchas têm sido pacíficas é uma afirmação falsa, pois basta assistir aos vídeos para perceber que a Guarda Nacional foi constantemente atacada:
Diante da violência desencadeada pelos manifestantes, os funcionários foram forçados a se defender e a preservar a ordem pública, que é o seu dever. Em quase duas semanas já são 7 guardas nacionais e 15 policiais feridos. Vários deles com ferimentos à bala:
No ano passado, em 12 de Abril, o menino Brayan Principal, de 13 anos, foi assassinado por vários tiros quando esses manifestantes “pacíficos” irromperam sobre o projeto de urbanização Gran Misión Vivienda, em Barquisimeto, no Estado de Lara. Houve ações criminosas que destruíram estabelecimentos comerciais e instituições como a Direção Executiva de Magistratura, em Caracas, além de pessoas prestes a serem linchadas pelos manifestantes. Isso pode ser chamada de “manifestação pacífica”?
Por outro lado, o Arcebispo de Caracas (foto) usou em seu discurso uma expressão que pertence ao hoje Beato e mártir, Dom Romero, quando disse em março de 1980 ao seu governo: “cessem a repressão”.
É impossível comparar a repressão do governo direitista salvadorenho de 1980, vindo de uma ditadura de 50 anos, com o que está acontecendo hoje na Venezuela.
Dom Romero havia exigido aos Estados Unidos que retirassem seu suporte militar ao regime de El Salvador e ordenassem que a mesma junta de governo, liderada pelo direitista Napoleón Duarte, colocasse o “fim da repressão” de camponeses e líderes sociais indefesos. Não há como comparar.
Na Venezuela está em jogo a luta de um povo que há 18 anos decidiu emancipar-se do bipartidarismo perverso que havia lhe imergido no esquecimento, e esta luta lhe custou sangue e vidas de homens e mulheres das camadas populares.
Na Venezuela o povo sonha e trabalha por um processo de inclusão social, apesar de todos os erros que ocorreram durante sua realização.
- A terceira idade tem sua pensão assegurada,
- os bairros pobres têm médicos,
- as moradias para camadas mais carentes são uma realidade,
- já não há mais bacharéis nas universidades que não tenham passado por seleção – e a Venezuela é atualmente o quinto país do mundo em matrículas universitárias -,
- os jovens pobres têm acesso às artes através de uma Universidade e do Sistema Nacional de Orquestras, etc.
Esse é o modelo de inclusão que mais se aproxima da proposta evangélica de Mateus 25,32: “Porque tive fome, e destes-me de comer…” Por que então a própria igreja institucional se coloca contra um modelo de tal natureza social e evangélica?
Aqui já quase é ideia comum de que ser padre e opositor ao governo são sinônimos. Há religiosos venezuelanos que vão ao exterior para denegrir seu país, mas o que não é dito lá fora é que, ao longo de sua história, a Venezuela tem tido uma instituição eclesial
- instalada nas sacristias,
- baseada na burguesia
- e sem dimensão profética.
Sempre formou-se uma igreja amartirial e aprofética em sucessivos governos e potências econômicas, mas essa dinâmica não foi possível depois que o Presidente Chávez chegou ao poder.
Hoje, lamento muito que os pastores não reconheçam as suas ovelhas, nem respeitem suas individualidades ideológicas ao emitir comunicados.
Ao fechar este artigo: surpresa! Encontro um pronunciamento do recém-eleito Cardeal Baltazar Porras (Foto) elogiando a violência dos manifestantes em sua arquidiocese, Mérida, cidade assolada pela violência há semanas. Esta questão merece uma reflexão particular, mas por ora apenas sugiro a leitura do pronunciamento do Arcebispo: “Yo estoy con los muchachos”.
Enquanto isso acontece, o êxodo silencioso de católicos é contabilizado aos milhares, todo mês, indo a outras igrejas cristãs ou simplesmente não retornando para suas paróquias porque sentem-se acusados de ser cúmplices por apoiar um modelo que seus pastores atacam constantemente. Aqui nem os pastores reconhecem as suas ovelhas e nem as ovelhas escutam a voz dos pastores.
A parábola evangélica da ovelha desgarrada se reverteu, os pastores ficaram com uma minoria no rebanho, composta por aqueles que aceitam seu afastamento pastoral, e noventa e nove ovelhas dispersas estão vagando frente a tal incoerência evangélica.
Concluo com uma citação do discurso proferido pelo Papa Francisco aos bispos mexicanos em 13 de fevereiro de 2016:
“Encostem, então, delicada e respeitosamente, na profunda alma do seu povo, desçam com atenção e decifrem sua face misteriosa… Em seus olhares, o povo mexicano tem o direito de encontrar os rastros de quem ‘já viu o Senhor’ (cf. Jo 20:25), daqueles que já estiveram com Deus. Isto é o essencial.
Não percam, então, tempo e energia
- com coisas secundárias,
- com fofocas e intrigas,
- em vãos projetos de carreira,
- nos planos vazios da hegemonia,
- nos clubes infecundos de interesses ou conchavos.
- Não se deixem levar pela fofoca e pela calúnia.
Apresentem a seus sacerdotes este entendimento do ministério sagrado”.
Numa Molina, SJ
Fontes:http://www.ihu.unisinos.br/566662-igreja-na-venezuela-povo-de-deus-chocado-com-seus-pastores
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