O que os austríacos demonstraram ontem é que ser nacionalista não é ser patriota. Pelo contrário.
Rui Tavares – 5/12/2016
Foto: Alexander Van der Bellen vence eleições presidenciais por três pontos percentuais na Áustria – Roland Schlager/AFP
“Nos tempos que correm, à distinção clássica entre esquerda e direita não há apenas que acrescentar a segunda distinção essencial entre libertários e autoritários.
A crise ecológica, a tragédia dos refugiados e uma globalização desregrada e nas mãos dos mais poderosos trazem para a ribalta uma terceira distinção essencial: nacionalismo ou cosmopolitismo”.
Já está perdida a UE? Durante meses só se falava da possibilidade de a extrema-direita ganhar na Áustria e de como isso faria soar o dobre de finados da UE. Para os fãs da desgraça até houve o frisson adicional de os fascistas terem três hipóteses de ganhar estas eleições: na primeira volta, na segunda volta, e numa repetição que se deu por se considerar que a margem da sua anterior derrota teria sido demasiado para que não limpasse todas as dúvidas.
Ontem (no Domingo passado – NdR), pelo menos estas eleições ficaram resolvidas de vez: a extrema-direita regrediu significativamente em relação à votação anterior do seu candidato, Norbert Hofer.
O que é estranho nestas eleições é só se falar do derrotado. Então e o vencedor, Alexander Van der Bellen? Aquilo de que quase nunca se falou foi da possibilidade de pela primeira vez num país da UE haver um presidente da esquerda ecológica, libertária e cosmopolita. E foi essa possibilidade que se concretizou, agora por uma margem maior ainda do que nas últimas eleições frustradas na Áustria.
Direita x Esquerda na Áustris e na Europa
A vitória de Alexander Van der Bellen
- não é só uma boa notícia porque a extrema-direita não ganhou.
- É uma boa notícia porque ganhou a esquerda que é diametralmente oposta à extrema-direita.
Não uma esquerda centrista e acomodada. Não uma esquerda fechada, nacionalista e simpática com o autoritarismo e a corrupção (desde que sejam “anti-imperialistas”).
A esquerda de Alexander Van der Bellen é a que defende
- que todos somos cidadãos do mundo,
- que todos temos uma responsabilidade perante o planeta,
- que todos temos de ser fiéis sem concessões no respeito pelos direitos humanos,
- que os nossos estados têm uma obrigação de receber refugiados (o próprio Van der Bellen é filho de refugiados),
- que há vida para lá do estado-nação e, por fim,
- que a construção de um projeto europeu democrático e de uma política mundial em que os cidadãos (e não só os governos e as multinacionais) tenham voz são as únicas maneiras de regular a globalização de maneira a que ela beneficie toda a gente e todo o planeta.
São estes os valores que quando corajosa e integralmente defendidos conquistam maiorias. A extrema-direita teria provavelmente conquistado o poder contra um candidato do sistema. E se a ela se opusesse um candidato de um suposto anti-sistema que no fundo concordasse com a extrema-direita
- nas simpatias por Putin
- e no fechamento de fronteiras,
pouca diferença faria.
Mas quando a extrema-direita é colocada perante adversários de princípios e valores assumidamente opostos, a escolha fica clara:
- autoritarismo ou liberdade,
- regressão ou progresso,
- passado fascista ou futuro democrático,
- xenofobia ou cosmopolitismo,
- uma Europa unida, sem fronteiras e com um papel no mundo
- ou uma mera coleção de países com medo do vizinho, desconfiança do estrangeiro e cada vez mais irrelevantes.
Nos tempos que correm, à distinção clássica entre esquerda e direita não há apenas que acrescentar a segunda distinção essencial entre libertários e autoritários. A crise ecológica, a tragédia dos refugiados e uma globalização desregrada e nas mãos dos mais poderosos trazem para a ribalta uma terceira distinção essencial: nacionalismo ou cosmopolitismo.
Nacionalismo significa achar que o mundo se organiza por compartimentos estanques e que cada um deles, democrático ou não, impõe a ordem no seu quinhão.
Cosmopolitismo significa achar que
- além de cidadãos da nossa cidade, da nossa região e do nosso país,
- temos direitos e deveres como cidadãos do nosso continente e do nosso mundo.
O que os austríacos demonstraram ontem é que ser nacionalista não é ser patriota. Pelo contrário. Os cidadãos do mundo
- não são apenas os melhores guardiões do planeta
- e os melhores defensores da nossa humanidade comum
- como — de forma crucial — os melhores patriotas para o seu país.
Rui Tavares
Historiador, deputado no Parlamento europeu, especialista em História das Ideias, cronista no jornal Público, de Lisboa
Fonte: https://www.publico.pt/2016/12/05/mundo/noticia/valores-que-vencem-1753640
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