Todo ano, no último sábado de novembro, faz-se memória da Grande Fome, o Holodomor, que matou de 4 a 7 milhões de ucranianos entre 1932 e 1933.
O pesadelo de Holodomorse faz presente e atual com a fome mundial e com o ódio sobre os povos.
- Mesmo que no Novo Regime Climático a fertilidade dos solos e a colheita dos grãos estejam reféns de eventos extremos, por secas ou tempestades, para que o alimento chegue às pessoas
- faz-se necessária uma opção política radical para isso.
Se hoje parece utópico que haja pão em todas as mesas, a distopia das mortes por inanição não está distante no tempo nem espaço.
Todo ano, no último sábado de novembro, faz-se memória da Grande Fome, o Holodomor, que matou de 4 a 7 milhões de ucranianos entre 1932 e 1933.
Em 2022, quando os ucranianos voltam a sofrer com outro massacre pela invasão russa,
- o resto do mundo sofre seus reflexos com a falta de logística de exportação de grãos, a crise energética, o temor nuclear
- e, ao que se indica, sem prognóstico de melhoras para o próximo ano, independente de quando a guerra acabará.
- O pesadelo de Holodomor se faz presente e atual com a fome mundial e com o ódio sobre os povos.

Vítima de Holodomor, em Kharkiv, 1933
Foto: Alexander Wienerberger | Arquivo Diocesano de Viena, Áustria
Não há consenso na comunidade acadêmica internacional se as mortes de Holodomor configuram-se como um genocídio direcionado e planejado pelo regime stalinista da União Soviética.
- O governo soviético negou as primeiras acusações relatadas pelo jornalista galês Gareth Jones, do The Times, que viajou duas vezes para o país entre 1930 e 1931.
- Jones foi banido da URSS após publicar seus relatos que envergonhavam a estrutura socialista soviética perante o caos que Ocidente vivia na Grande Depresão de 1929.
Anos depois, em viagem à Manchúria, ele é sequestrado e morto, sendo o governo soviético o principal acusado.
- No entanto, outras evidências e registros históricos da Grande Fome sobreviveram com o tempo,
- como as imagens registradas pelo fotógrafo Alexander Wienerberger,
- e outras seguem sendo analisadas por historiadores.
A mensagem do Papa Bento XVI no Angelus de 23 de novembro de 2008, no dia de memória do massacre, frisa aquela que é a causa inconteste:
- “Celebra-se nestes dias o 75º aniversário da Holodomor a ‘grande carestia’ que nos anos de 1932-33 causou milhões de mortos na Ucrânia e noutras regiões da União Soviética durante o regime comunista.
- Ao desejar vivamente que nunca mais ordenamento político algum possa, em nome de uma ideologia, negar os direitos da pessoa humana, a sua liberdade e dignidade“.

Vítimas de Holodomor, em Kharkiv, 1933
Foto: Alexander Wienerberger | Arquivo Diocesano de Viena, Áustria
A dominação soviética sobre o território ucraniano já vivia uma década de violência, de revoluções e contra-revoluções.
- A Ucrânia era um território em conflito à parte de toda instituição da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.
- Concomitante ao declínio do Império Russo, os ucranianos lutaram pela construção de um Estado Nacional próprio.
Foto: Reprodução
Não obstante, como a autora Anne Applebaum escreve em seu livro “A fome vermelha” (Ed. Record, 2017),
- para os partidos russos de então, inclusive os revolucionários bolcheviques,
- a Ucrânia nunca existiu, e aquele território era a Rus’ Kievana. “
Além de seu preconceito nacional, os bolcheviques tinham motivos políticos específicos para desgostar da ideia de independência ucraniana.
“A Ucrânia ainda era essencialmente uma nação agrícola”,
escreve Applebaum. Segundo a autora,
- os líderes da Revolução Soviética tinham uma relação ambígua para com os ucranianos,
- apoiando no conflito contra o czar, mas combatendo o nacionalismo.
Ainda, no estabelecimento do novo governo, e a acentuação da guerra civil, Stalin via a Ucrânia como o principal estoque de grãos para os russos, o que fica mais evidente nesta mensagem de Lenin ao front ucraniano, citada pela autora:
- “Empreguem toda a energia e todas as medidas revolucionárias para enviar grãos, grãos e mais grãos!!
- Caso contrário, Petrogrado poderá morrer de fome.
- Usem trens especiais e destacamentos especiais. Coletem e armazenem. Escoltem as composições ferroviárias. Nos informem diariamente.
Pelo amor de Deus!”.

Mapa da Ucrânia em 1922
Fonte: APPLEBAUM, A. “A fome vermelha”. Ed. Record, 2017.
Uma nova política econômica precisava ser administrada para abastecer a maior nação do mundo.
- Essa foi a política de coletivização das terras instaurada ao final da década de 1920 e que resultou em um completo desastre humanitário.
- Quando os bolcheviques conseguem assumir o controle do território por meio do Partido Comunista Ucraniano, a partir de 1925, faz-se a dekulakização da Ucrânia,
- isto é a desapropriação das terras dos pequenos agricultores para o Estado.
Os historiadores Robert William Davies e Stephen G. Wheatcroft
- apontam em “The Years of Hunger: Soviet agriculture, 1931-1933” (Ed. Palgrave Mcmillan, 2004) que,
- a coletivização foi confusa,
- resultou em uma semeadura tardia do trigo e do centeio no outono gelado da Ucrânia,
- o que prejudicou a germinação dos grãos e, logo, uma colheita produtiva.
A coletivização das terras era um estágio avançado da expropriação das indústrias agrícolas privadas, que serviria como base de industrialização conforme o I Plano Quinquenal.
Como apontam Davies e Wheatcroft,
- a política stalinista não conseguiu ser célere o suficiente para respeitar a produção da safra de 1930,
- por conseguinte, os camponeses ucranianos, já massacrados pela violência da última década,
- perderam o controle dos seus territórios, a liberdade ou a certeza da semeadura em suas áreas.
A pequena colheita nas estepes ocidentais da URSS era escoada para alimentar Moscou, sob ordem, repressão e perseguição do Politburo.

Mapa físico da Ucrânia em 1932
Fonte: APPLEBAUM, A. “A fome vermelha”. Ed. Record, 2017.
O regime stalinista escondeu da comunidade internacional a grande fome vivida na Ucrânia.
- A história de Holodomor até hoje é tratada com desconfiança
- pelo uso político que tanto o regime nazista de Hitler quanto a democracia liberal dos EUA
- fizeram para atacar o Estado soviético.
Não obstante, a obscuridade das informações foi superada
- primeiro com as fotografias vazadas de Wienerberger,
- mas em conjunto com o desenvolvimento de robustas pesquisas a partir da queda da URSS na década de 1990, com destaque especial à Universidade de Harvard,
- associando dados geográficos, demográficos, econômicos e ecológicos pode se mensurar o que aconteceu nos primeiros anos do stalinismo.
O Great Famine Project, coordenado hoje pelo professores Serhii Plokhii, Kostyantyn Bondarenko e Nataliia Levchuk, em Harvard, está há décadas construindo análises sobre as perdas populacionais no período de Holodomor.
- Conforme o cruzamento de dados de três censos da União Soviética, considerando as taxas de migração e de natalidade que ali constam,
- e com dados do Instituto de Demografia e Estudos Sociais de Kiev,
- os pesquisadores estimam que em 1933 o número de mortos nas regiões de Kiev e Kharkiv excederam em mais de 900 mil comparado com os anos anteriores e posteriores.
Embora as demais regiões ucranianas tenham sofrido grandes perdas populacionais nesse período, em nenhuma outra houve elevação que chegasse perto destes números. Destaca-se, é claro, que essas eram as regiões mais populosas. No entanto, na fronteira da Ucrânia com a Rússia, região conhecida como Stalino à época, as perdas populacionais foram as menores registradas.

Mapa calcula o número aproximados de mortos no território ucraniano nos anos de 1932, 1933 e 1934
Fonte: Great Famine Project | Harvard University

Mapa calcula o número aproximados de mortos no território ucraniano entre 1932 e 1934
Fonte: APPLEBAUM, A. “A fome vermelha”. Ed. Record, 2017.
Esses dados cruzados com os conflitos históricos e a composição étnica do território criam o principal argumento para identificar Holodomor como um genocídio.
Em outra análise censitária, considerando o censo de 1926, os pesquisadores constatam semelhanças entre essas áreas de maior perda populacional com as de maior ocupação por população de etnia ucraniana. As áreas com o menor número de mortos tinham predominância étnica de germânicos (Odessa) e russos (Stalino, hoje as áreas ocupadas pelo exército russo, principalmente Luhansk).

Mapa étnico da Ucrânia
Fonte: Great Famine Project | Harvard University | Dados do Censo soviético de 1926.
É importante sublinhar que embora não haja comprovações de uma política deliberada por parte de Joseph Stalin para exterminar a população e ocupar o território ucraniano,
- 16 países reconhecem Holodomor como genocídio, entre eles estão a Ucrânia, Estados Unidos, Argentina, Brasil (por projeto de lei aprovado em 2022) e Vaticano.
- Na última Audiência Geral, de 23 de novembro, o Papa Francisco recordou de Holodomor e reafirmou que as mortes foram causadas “artificialmente por Stalin”.
Para Francisco, o povo ucraniano sofre hoje o martírio de 1930, sob as mãos de Putin.
Valas coletivas para enterrar os corpos em Kharkiv, 1933
Foto: Alexander Wienerberger | Arquivo Diocesano de Viena, Áustria

“Proibido enterrar corpos aqui”. Placa escrita em russo demonstrava a preocupação do Politburo com o número de mortos em Kharkiv, 1933
Foto: Alexander Wienerberger | Arquivo Diocesano de Viena, Áustria
Desta vez, a guerra mata com armas, bombas, drones e as imagens das atrocidades circulam abertamente pela internet. Enquanto isso,
- a destruição dos campos e a paralisação da produção de alimentos no Leste Europeu, que até 2021 representava 1/3 da produção mundial de grãos,
- disparou o preço dos alimentos e da energia, criando uma epidemia de fome que ataca sobretudo o continente africano,
- que tem 378 milhões de pessoas em insegurança alimentar severa em 2022.
Como no passado, a fome é direcionada e é uma escolha política.
O filme “A Sombra de Stalin“, de Agnieszka Holland (2019), retrata a história de Gareth Jones, sua chegada na União Soviética, seu relato sobre Holodomor e a perseguição que sofreu do governo soviético.
IHU
Fonte: https://www.ihu.unisinos.br/624289-holodomor-nao-esta-distante-no-tempo-nem-espaco
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