OUTRASMÍDIAS – ALÉM DA MERCADORIA
Por Bert Schouwenburg, no Morning Star, com tradução na – 06/09/2022/ Foto: DAQUI
Relatório aponta aumento crítico de insegurança alimentar em 2021, com estimativas de até 828 milhões de famintos. Documento reconhece ser urgente combater restrições do modelo agrícola atual e sugere transição agroecológica.

Michael Fakhiri, novo Relator Especial para o direito à alimentação pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU – Reprodução
Atendendo a um pedido da reunião plenária das Nações Unidas de 16 de dezembro de 2021, o relator especial sobre o direito à alimentação, Michael Fakhiri, apresentou um relatório provisório à assembleia geral que inclui uma análise das questões emergentes da pandemia de Covid-19 e seu impacto na segurança alimentar e nutricional.
Em seu resumo, ele afirma que
- há uma crise alimentar, mas a maioria dos governos nacionais não deu uma resposta internacional substantiva a ela.
- Seu relatório destaca as restrições estruturais e descreve como uma transição justa para a agroecologia poderia ser um caminho a seguir.
De acordo com o relatório de Fakhiri, a fome vem crescendo desde 2015.
- Em 2021, entre 702 e 828 milhões de pessoas foram afetadas por ela,
- 103 milhões a mais do que durante o período de 2019 a 2020,
- e 46 milhões a mais do que em 2020.
Em 2021,
- 31,9% das mulheres estavam em insegurança alimentar moderada ou grave
- em comparação com 27,6% dos homens.
A desigualdade aumentou acentuadamente durante a pandemia de Covid-19,
- com a riqueza de bilionários e os lucros de corporações subindo a níveis recordes,
- particularmente no setor alimentar, onde os ganhos estavam aumentando na ordem de 1 bilhão de dólares a cada dois dias.
- Em 2021, a multinacional de comércio de alimentos Cargill obteve quase 5 bilhões de dólares em lucro líquido, seu maior superávit em 156 anos de história.
A pandemia da fome pode ser atribuída ao fracasso da governança global.
- Não é apenas um problema de saúde, mas também um desafio aos direitos humanos,
- cujo impacto é determinado por uma liderança fraca, desigualdade socioeconômica, racismo sistêmico e discriminações estruturais.
A invasão russa à Ucrânia trouxe à tona a questão dos alimentos, já que 26 países tem ao menos 50% de suas importações de trigo provenientes dos dois estados em guerra.
Apesar disso,
- a subida nos preços dos grãos e no óleo de cozinha não é resultado da escassez em si,
- mas sim de acumuladores, comerciantes e especuladores se aproveitando da situação.
A razão principal para que o mundo esteja vivendo uma crise alimentar é a falha em cooperar e coordenar esforços para aliviar seus efeitos, o que permite em seu lugar a crescente influência do agronegócio e da especulação de commodities.
De fato, o agronegócio
- aproveitou a pandemia para lucrar, e usou seu poder financeiro
- para intimidar e pressionar os governos a interromper medidas que promovem o direito à alimentação e a uma alimentação saudável.
Consequentemente, as desigualdades existentes foram agravadas pela pandemia.
- Mesmo antes do início do Covid-19, os trabalhadores agrícolas e de alimentos
- experimentavam as maiores incidências de pobreza no trabalho e insegurança alimentar.
Em 2021,o número de crianças em trabalho infantil aumentou para 160 milhões, dos quais 70% estavam na agricultura.
- Mas, apesar da crise alimentar sem precedentes de hoje,
- o mundo aguarda um compromisso multilateral em nome dos Estados membros da ONU para realizar o direito à alimentação.
A fim de melhorar essa difícil situação,
- o relator sugere que o quadro jurídico internacional para o direito à alimentação seja atualizado
- para incluir políticas de comércio que sejam submetidas à soberania alimentar e os direitos trabalhistas,
- ao invés de se pautar simplesmente pela lógica de compra e venda de commodities comestíveis.
No entanto, os estados enfrentam restrições estruturais que tornam improváveis gastos adicionais.
Em resposta à pandemia,
- todos eles tomaram mais empréstimos, fazendo com que suas dívidas aumentassem no ritmo mais rápido em cinco décadas
- e elevando os pagamentos da dívida dos países pobres aos níveis mais altos desde 2001.
Portanto, à medida que os preços dos alimentos sobem, os países se deparam com a escolha de alimentar as pessoas ou pagar o serviço da dívida.
É evidente que o sistema financeiro internacional prevalecente, dominado pelos ricos estados ocidentais, impede que os governos cumpram suas obrigações de alimentar seus povos.
Desde a década de 1950, o sistema alimentar mundial foi gradualmente industrializado.
- A produtividade não foi medida em termos de saúde humana e ambiental, mas exclusivamente em termos de produção e crescimento econômico.
- Esse processo promoveu uma dependência de máquinas baseadas em combustíveis fósseis e insumos químicos,
- substituindo práticas agrícolas regenerativas e integradas de longa data.
Apesar de um aumento de 30% na produção de alimentos desde meados da década de 1960, a desnutrição é abundante – ilustrando assim que
- o problema não é a falta de alimentos,
- mas a desigualdade e outros impedimentos sistêmicos.
O problema fundamental
- não é que o acesso dos agricultores a fertilizantes químicos tenha sido esgotado pela guerra na Ucrânia,
- é que muitos agricultores dependem deles em primeiro lugar.
Os fertilizantes químicos esgotam os nutrientes do solo e causam danos ambientais através do escoamento em aquíferos e cursos de água. No curto prazo, é importante que os agricultores tenham acesso a fertilizantes, mas no longo prazo o objetivo final deve ser a independência deles.
A agroecologia é definida como a aplicação de práticas ecológicas aos sistemas e práticas agrícolas e, na visão de Fakhri,
- ela é essencial para cumprir o direito à alimentação,
- adaptar-se às mudanças climáticas
- e aumentar a biodiversidade.
Como prática agrícola, é de mão-de-obra intensiva e abrange uma série de técnicas de produção derivadas de conhecimentos locais que se baseiam em recursos imediatamente disponíveis.
A União Internacional dos Trabalhadores da Alimentação (UITA) apoia amplamente o relator, com a condição de que
- deve haver uma transição justa para os trabalhadores agrícolas e suas famílias.
- Para que isso aconteça, a UITA diz que é fundamental que os sindicatos tenham voz no planejamento da transição,
- para que não fiquem para trás.
- Empregos verdes seguros com representação sindical devem ser fundamentais em uma mudança radical do atual sistema desigual e lucrativo de produção e consumo sem fim,
- rumo a um modelo mais sustentável onde as preocupações dos trabalhadores e pequenos produtores são centrais.
O acesso à terra e a garantia de direitos de posse para quem nela trabalha são pré-requisitos para o gozo do direito à alimentação – e isso significa restringir o poder corporativo.
Os sistemas alimentares emitem aproximadamente um terço dos gases de efeito estufa do mundo, impulsionados pela agricultura intensiva e políticas alimentares orientadas para a exportação.
O “grupo ABCD”, assim chamado pela conveniência alfabética de suas iniciais, ADM, Bunge, Cargill e (Louis) Dreyfus,
- representam entre 70% e 90% do comércio global de grãos,
- e quatro companhias agroquímicas, incluindo a Bayer e a BASF,
- controlam cerca de 60% do mercado global de sementes e 75% do mercado de pesticidas.
A prioridade delas é o lucro dos acionistas e não o bem público.
Além disso,
- os estados são constrangidos em suas ações em relação à política alimentar por causa de decretos da Organização Mundial do Comércio,
- que limitam o apoio doméstico e a participação pública,
- juntamente com direitos de propriedade intelectual que favorecem as empresas transnacionais.
É bastante claro que os modos de produção capitalistas existentes e os termos de comércio impostos pelas instituições internacionais dominadas pelo Ocidente são em grande parte os culpados pelas pessoas não terem o suficiente para comer.
O excelente relatório de Fakhri, que pode ser encontrado no site da ONU, é leitura essencial para quem deseja ter uma compreensão mais clara de como o sistema funciona.
No entanto, como Karl Marx disse:
“Os filósofos apenas interpretaram o mundo de várias maneiras. O ponto é, no entanto, mudá-lo.”
Fonte: https://outraspalavras.net/outrasmidias/fome-a-onu-ve-o-dedo-do-agronegocio/
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