Por: Patricia Fachin | 29 Agosto 2022 – Foto: DAQUI
Segundo o jurista Fábio Konder Comparato, essa mazela “persiste inabalável desde a vinda dos portugueses a estas terras”
A data histórica dos 200 anos da Independência do Brasil, mais do que motivo para grandes celebrações, é oportuna para diagnósticos e revisões sobre o percurso da nação brasileira ao longo dos dois séculos.
Um “diagnóstico”da situação do país à luz da política, da democracia e do Direito praticados desde 1822 é justamente o que propõe o jurista Fábio Konder Comparato, em artigo publicado recentemente no Cadernos IHUideias número 337, publicação do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, intitulado “O Direito e o Avesso”.
O “tratamento médico” para as mazelas constatadas, sugere, pode ser “efetuado por uma equipe mais competente de cientistas sociais”.
Fábio Konder Cpmparato – Foto: DAQUI
Uma das primeiras constatações do professor emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP, ao comentar o episódio da Proclamação da República, é a confirmação de um relato do franciscano Frei Vicente do Salvador, nascido no Brasil Colonial:
“A revolta militar do Campo de Santana, em 15 de novembro de 1889, que o povo assistiu bestializado, segundo a expressão famosa de Aristides Lobo,
- não visava a abolir a monarquia, mas simplesmente a destituir o Ministério Ouro Preto.
- Não estava na mente de nenhum dos líderes intelectuais do movimento, todos positivistas, lutar contra o multissecular costume, já denunciado por Frei Vicente do Salvador no início do século XVII,
- por força do qual ‘nem um homem nesta terra é repúblico, nem zela e trata do bem comum, senão cada qual do bem particular'”.
Tanto nesse episódio histórico quanto nas seis Constituições promulgadas ao longo do último século, culminando na Constituição de 88, a conclusão de Comparato é resumida do seguinte modo:
“A Constituição Federal de 1988 abre-se com a declaração solene de que
- ‘a República Federativa do Brasil […] é um Estado democrático de Direito‘,
- no qual ‘todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição’ (art. 1º).
Sucede que essa Constituição, como todas as que a precederam, não foi aprovada pelo povo.
- Os que a redigiram intitularam-se representantes daquele do qual todos os poderes emanam.
- Mas o representado, em cujo nome a Constituição foi feita, não teve a menor consciência, ao elegê-los, de que o fazia para essa finalidade maior”.
A Independência, assim como a instituição da última Constituição, “não suscitou o menor entusiasmo popular”, assegura.
Sua tese é corroborada pelos relatos de Saint-Hilaire, botânico e naturalista francês, um dos primeiros pesquisadores europeus a realizar pesquisas e explorações no Brasil Colônia durante os anos de 1816 e 1822:
“A massa do povo ficou indiferente a tudo, parecendo perguntar como o burro da fábula: – Não terei a vida toda de carregar a sela de montaria?”.
Para o jurista, esses fatos históricos indicam que
“em suma, nos fastos de nossa história, o povo permanece sempre como o grande ausente; o que significa que jamais o encontramos ‘nos arranjos institucionais e culturais da nação‘”.
O segundo diagnóstico de Comparato é que
“o supremo problema brasileiro, que persiste inabalável desde a vinda dos portugueses a estas terras, é a desigualdade social“, da qual o“povo” é o protagonista. “
No relatório de 2022 do World Inequality Laboratory, elaborado pelo famoso economista Thomas Piketty,
- o Brasil ocupa, dentro do G-20, o grupo que reúne as maiores economias do mundo,
- o segundo lugar na lista dos países mais desiguais, atrás apenas da África do Sul.
A parcela de 1% mais rica de nossa população possui metade de toda a riqueza nacional, ao passo que a mais pobre detém menos de 1% dela”,
informa.
A parcela de 1% mais rica de nossa população possui metade de toda a riqueza nacional, ao passo que a mais pobre detém menos de 1% dela – Fábio Konder Comparato – Tweet
A transformação do contexto de desigualdades sociais, assegura, depende de um “planejamento”fundado
“na principal riqueza nacional, que não é nenhum bem material, mas sim o povo”.
Ele explica:
“É preciso transformá-lo, mediante adequadas políticas públicas. Para tanto, o que importa, antes de tudo, é reorganizar o Estado.
- Assim como a modernidade estatal principiou com a divisão de Poderes no Reino Unido e na França a partir do século XVII,
- da mesma forma o Estado do Futuro exige a implementação de um órgão de planejamento autônomo e não meramente burocrático,
- dotado de participação popular e submetido a um controle adequado”.
Em entrevista recente, concedida ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Fábio Konder Comparato desdobrou algumas das ideias expostas no Cadernos IHU ideias “O Direito e o Avesso” à luz da política e da disputa eleitoral deste ano. De acordo com ele,
“a característica marcante de nossas instituições políticas é a sua dupla vigência:
- a oficial, nem sempre respeitada,
- e a não oficial, mas que acaba finalmente por se impor,
- pelo fato de corresponder aos interesses dos grupos dominantes em nossa sociedade”.
Essa estrutura dúplice, explica, tem implicações jurídicas e, consequentemente políticas e sociais, à medida que
“dá origem a uma correspondente duplicação de ordenamentos jurídicos:
- um declarado oficialmente pelo Estado, a culminar com o sistema constitucional;
- outro, composto por uma interpretação seletiva de normas, efetuada pelos agentes estatais – notadamente magistrados judiciais –,
- interpretação essa que quase sempre favorece os interesses próprios dos potentados econômicos privados”.
Sobre o autor:
Fábio Konder Comparato é autor de, entre outros, Muda Brasil. Uma Constituição para o desenvolvimento democrático (Editora Brasiliense, 1986), Para viver a democracia (Editora Brasiliense, 1989), A afirmação histórica dos direitos humanos (Editora Saraiva, 1999), Ética: Direito, Moral e Religião no Mundo Moderno (Companhia da Letras, 2006) e Ruma à Justiça (Editora Saraiva, 2010).
Pelo IHU, Fábio Konder Comparato publicou também os seguintes artigos, disponíveis online: Para arejar a cúpula do judiciário, Cadernos IHU Ideias, número 288, vol. 17, 2019; Compreensão Histórica do Regime Empresarial-Militar Brasileiro, entre 1964 e 1985, Cadernos IHU Ideias, número 278, vol. 16, 2018; Brasil: A dialética da dissimulação, Cadernos IHU Ideias, número 239, vol. 14, 2016; O poder judiciário no Brasil, Cadernos IHU Ideias, número 222, vol. 13, 2015; Compreensão histórica do regime empresarial-militar brasileiro, Cadernos IHU Ideias, número 205, vol. 12, 2014; Brasil: verso e reverso constitucional, Cadernos IHU Ideias, número 197, vol. 11, 2013.
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Patrícia Fachin
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