
Pergunto-me a mim próprio se a maior revolução na história das religiões não está naquela ordem que Jesus, na continuidade dos profetas, essas figuras colossais da História, coloca na boca de Deus: “Ide aprender o que isto quer dizer: “Eu não quero sacrifícios, eu quero justiça e misericórdia”.”
Por princípio, nas diferentes religiões, uma das componentes essenciais é precisamente o sacrifício a oferecer à divindade.
E degolam-se cordeiros, vitelos, bois, pombas, cabritos. Mesmo pessoas humanas foram sacrificadas.
Quem não se lembra do terror de Isaac, o miúdo carregando com a lenha do sacrifício, desconhecendo que a vítima era ele próprio?
Também por princípio, só os sacerdotes podem oferecer sacrifícios. Há quem afirme que no tempo de Jesus,
- serviam no Templo de Jerusalém uns 20.000 sacerdotes e levitas
- – os levitas eram uma ordem inferior de clérigos, que ajudavam os sacerdotes em vários serviços, como apresentar os animais e a lenha para o altar.
Embora hoje os historiadores estejam de acordo em reconhecer que é um número exagerado,
- Flávio Josefo escreveu que numa Páscoa em Jerusalém foram degolados 255.600 cordeiros.
- Atendendo ao sangue que corria no meio do calor, entende-se a expressão forte do profeta, quando faz Deus dizer que é um fedor que chega aos céus.
Jesus veio proclamar
- que Deus é bom,
- que está farto de sacrifícios,
- e foi mesmo o enfrentamento com o sacerdócio judaico uma das razões da sua crucifixão.
Deus é amor. Se há definição para Deus, ela só pode consistir na acção de amar: Deus é aquele que ama. Deus está do lado da Humanidade.
- Deus criou não para a sua maior honra e glória,
- mas para a alegria e a realização plena dos homens, das mulheres, dos jovens, das crianças.
- Deus é Pai/Mãe e só quer a felicidade de todos.
Deus não está irado com a Humanidade. Portanto, não precisa de ser aplacado com sacrifícios.
A revolução é, pois, esta:
- os homens e as mulheres não têm que ter medo de Deus.
- Ora, se não precisam de ter medo, são livres e não escravos.
- Então, libertos do medo, não metem medo.
Porque não haja ilusões: quem tem medo mete medo. Deve-se ter medo de quem tem medo: por paradoxal que pareça, o medo desencadeia toda a forma de violência.
Que a rejeição dos sacrifícios por parte de Jesus constituiu uma revolução
- prova-se também pelo facto de, a partir de alusões já no Novo Testamento,
- se ter dado à própria morte de Jesus uma interpretação sacrificial:
- essa morte era a paga a Deus pela dívida contraída pela Humanidade com o pecado dos primeiros seres humanos.
A ofensa cometida contra Deus era infinita, e, assim, a reparação também tinha de ser infinita. Por isso, Deus não poupou o próprio Filho: a sua morte sangrenta foi exigida para aplacar Deus na sua ira e assim Deus reconciliar-se com a Humanidade.
Foi deste modo que Deus-amor voltou a ser o Deus-Moloch sanguinário e bárbaro.
Mas,
- se Deus é sádico e exige sangue, os homens podem fazer o mesmo
- – e aí está a religião enquanto legitimadora de tanto sangue derramado e de tanta violência cometida, desde sempre.
Aí está hoje uma invasão injusta com uma guerra hedionda, brutal, torturadora,
- que não poupa civis nem mulheres nem crianças,
- que atira cadáveres para valas comuns,
- que humilha a ONU, que não teme o perigo de uma guerra nuclear, com a ameaça do fim da própria Humanidade,
- e é uma invasão e uma guerra provocadas por quem se diz cristão, apoiado pelo seu líder religioso, contra cristãos…
O Deus que mete medo e apavora está ao serviço do poder: é fácil subordinar quem vive afogado em medo.
- Quanto poder religioso e político não foi beber no medo!
- Pregou-se o medo para poder subjugar e dominar homens e mulheres, povos inteiros.
- Se o medo for medo de Deus, já se está vencido.
Sim, Jesus sacrificou-se até à morte e morte de cruz, mas não foi Deus que exigiu a sua morte.
Pelo contrário.
- Jesus, cuja é mensagem é que Deus é Amor, não desistiu, apesar de saber as consequências dela por palavras e obras;
- foi coerente ao fim, morreu para dar testemunho da Verdade e do Amor, mandado crucificar pela coligação de interesses religioso-imperiais, postos em causa pelo Deus que Ele pregava.
Morreu crucificado, para proclamar bem alto e para sempre que Deus não quer crucificados.
Ser discípulo de Jesus quer dizer fazer como Ele fez e o que Ele fez: significa libertar os crucificados, os oprimidos, contribuir de todos os modos para a dignificação de todos.
No dia em que a mensagem de Jesus chegar à cabeça e ao coração e à acção dos seres humanos, já não haverá medo de Deus.
O que então habitará no mais íntimo será a reconciliação consigo e com os outros, e a compaixão e a misericórdia, que é o que Deus quer. E até haverá a graça do perdão, para perdoar o imperdoável — o perdão sem condições, que já não pertence à ordem do jurídico nem do político.
Aí, no perdão do imperdoável, é a razão humana enquanto capacidade de cálculo que cessa. Como escreveu o filósofo Jacques Derrida, perdoar o imperdoável aponta para algo que está para lá da imanência,
“qualquer coisa de trans-humano”:“na ideia do perdão, há a da transcendência”,
pois realiza-se um gesto que já não está ao nível da imanência humana. Aí, começa o domínio da religião.
“A partir desta ideia do impossível, deste “desejo” ou deste “pensamento” do perdão, deste pensamento do desconhecido e do transfenomenal, pode muito bem tentar-se uma génese do religioso.”
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia.
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Fonte: https://www.dn.pt/opiniao/o-perdao-e-a-genese-do-religioso-14853342.html
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