Eis o artigo.
Qual o preço que é preciso pagar pela modernidade?
O filme de Sergei Loniztsa, Na neblina, que se passa durante a Segunda Guerra Mundial na Bielorrúsia ocupada,
- narra a história de um homem simples que participa de um ato de sabotagem com mais três companheiros de trabalho,
- mas que, sem explicações, é o único que não é condenado à forca pelos ocupadores alemães.
Por isso
- ele é acusado pela sua própria comunidade de ter sido o delator,
- e assim, sem o reconhecimento dos seus, a vida perde o sentido para ele.
- No final das contas, sugere-nos o filme, cada indivíduo deve encontrar para si próprio o sentido de sua vida.
Em outro diapasão, em O porto, do diretor finlandês Aki Kaurimaki, o menino imigrante encontra nos pobres de Le Havre a solidariedade que dá sentido a suas vidas.
Assim tanto o grande cinema como a literatura oferecem pistas para a busca e a realização do sentido da vida,
- mas afinal devemos exercer nossa liberdade e fazer nossas escolhas,
- sabendo que se elas não levarem em consideração o outro,
- se forem mera expressão de um individualismo exacerbado, não nos levarão a lugar algum.
É esse o tema de um pequeno e fascinante livro que foi publicado na França contendo
- o debate que dois notáveis filósofos da modernidade, Christopher Lasch e Cornelius Castoriadis,
- travaram em 1986, intermediados pelo filósofo e jornalista Michael Ignatieff, no Canal 4 da televisão inglesa.
F0to: DAQUI
Esse debate jamais havia sido publicado.
- Embora já se tenham passado 35 anos, e os dois debatedores já tenham morrido,
- esse debate, publicado sob o título La culture de l’égoïsme (Ed. Climat), continua atual, dado seu elevado nível de abstração e a qualidade dos debatedores.
Christopher Lasch foi principalmente o autor de A cultura do narcisismo (Zahar), uma extraordinária crítica do capitalismo consumista e individualista,
e Cornelius Castoriadis, depois de muito cedo ter feito a crítica pioneira do burocratismo comunista, em conjunto com Claude Lefort, tornou-se psicanalista e um crítico agudo tanto do marxismo quanto do capitalismo liberal.
O tema do debate já era então a crise da modernidade,
- o fato de que o espaço público e a ideia de um destino comum estava desaparecendo,
- e um individualismo avassalador tomava conta das pessoas.
Enquanto isso, aqui no Brasil, o psicanalista e filósofo Joel Birmanescreveu um belo ensaio, O sujeito na contemporaneidade (Civilização Brasileira)
- que não é um livro político,
- mas nos mostra como a psique humana mudou nesse período,
- e, na sua conclusão, assinala que, ao passarmos da modernidade para a contemporaneidade, nos tornamos vítimas do narcisismo que Christopher Lasch já denunciava:
“numa cultura narcísica como a nossa, permeada pela moral do individualismo levada a seu exagero, cada qual trata apenas de sua vida, e considera o outro como o inimigo e o rival, seja isso real, seja potencial”.
O debate entre Castoriadis e Lasch começa com Ignatieff perguntando qual o preço que tem sido necessário pagar pela modernidade.
Nossas tradições políticas nos dizem que um sentimento de comunidade é necessário, mas o espaço público se reduziu e vivemos cada vez mais uma vida privada. E pergunta:
“Será que nos tornamos mais egoístas e menos capazes de engajamento político? Como vocês descrevem a mudança que ocorreu na nossa vida pública?”
Para Castoriadis, a mudança começou a acontecer no final dos anos 1950, e dois fatores foram determinantes:
- a desagregação do movimento operário, e do projeto revolucionário a que estava ligado,
- e a capacidade demonstrada pelo capitalismo de melhorar o padrão de vida das pessoas.
Em consequência as pessoas viraram as costas aos interesses comuns e mergulharam no seu mundo privado, ainda que seja preciso colocar “mundo privado” entre aspas, porque “nada é jamais totalmente privado, o próprio indivíduo é uma construção social”.
Lasch concorda e acrescenta que esse individualismo
- não é o do estilo antigo, que surge nos séculos XVII e XVIII,
- mas é um novo individualismo, do “eu mínimo” ou do “eu narcisístico”
- – um eu crescentemente desprovido de conteúdo cujo objetivo “é pura e simplesmente a sobrevivência”.
A alternativa à mera sobrevivência
- é uma vida moral, é uma vida pública ou uma vida voltada para o bem público,
- a qual, como já assinalava Aristóteles, para ser realizada com liberdade supõe a independência das necessidades materiais.
O que já estava claro para os filósofos iluministas – acrescento. Eles distinguiam o egoísmo ou a cobiça – ou as paixões – dos “interesses bem considerados” que se constituiriam em uma alternativa mais realista e razoável ao comportamento dominado pelo individualismo exacerbado e ao altruísmo.
O que realmente caracteriza a sociedade contemporânea, para Castoriadis, é “a falta de projeto”.
- Cada um pensa na sua aposentadoria, na educação de seus filhos,
- mas “esse é um tempo privado; ninguém mais é parte de um horizonte de tempo público”.
- O caso limite é o da multidão em um grande engarrafamento de trânsito.
- Ela está “mergulhada no oceano da coisa social”, mas cada motorista está isolado, e todos se odeiam mutuamente.
– Estamos então diante do “colapso do espaço público?” pergunta Ignatieff.
– Vivemos em um mundo muito instável, responde Lasch.
Antes nós éramos rodeados de objetos sólidos e duráveis, agora de imagens e mais imagens, fantasmagóricas, proporcionadas pelas novas mídias.
Desaparece, assim, a continuidade histórica que é uma referência fundamental para cada um.
- Mas Ignatieff cobra a resposta sobre a relação entre a crise do domínio público e o indivíduo voltado para si mesmo.
- Mas essa relação não é simples porque os dois elementos se determinam mutuamente, responde Lasch.
- As mudanças no indivíduo são também mudanças na sociedade. O problema está “no desaparecimento de um verdadeiro conflito social e político”.
- Porque, completa Castoriadis, “as pessoas tem a impressão, com razão, que não vale a penas lutar pelas ideias políticas que se encontram disponíveis no mercado”.
Mas e a política?
“A política se tornou cada vez mais uma questão de grupos de interesse”,afirma Lasch.
E dá um exemplo.
- O movimento pelos direitos civis, nos Estados Unidos, que teve como um de seus grandes líderes Martin Luther King,
- era um movimento cívico universal contra todos os racismos.
Nos anos 1970 esse movimento foi redefinido como um movimento dos negros contra o racismo branco. Perdeu universalidade; tornou-se manifestação dos interessados.
Como a direita faz a clássica “culpabilização das vítimas”, há, do outro lado, o que Lasch chama “a valorização da vítima”.
- Os movimentos sociais só ganham legitimidade quando apontam as vítimas de alguma discriminação.
- Desaparece, assim, a possibilidade de “uma linguagem que seja compreendida por todos e constitua a base da vida política”.
O que leva Castoriadis a concordar com força, também ele citando Aristóteles.
- Na pólis grega, quando havia interessados em uma determinada questão, eles não tinham direito a voto, porque a política estava voltada para o bem público, não para os grupos de interesse.
- Para a filosofia a partir do século XVII, com exceção de Rousseau, a política existe para defender o indivíduo do Estado.
“Ela não aceita que possamos, nós mesmos, construir uma comunidade política”.
Isto significa que criticam a democracia liberal baseada no interesse?
As concepções de bem público não se tornaram inviáveis nas sociedades muito grandes e muito divididas do presente? – pergunta Ignatieff.
Os dois interlocutores não têm uma resposta clara para a pergunta.
Não está claro no debate que há dois tipos de liberalismo político:
- o liberalismo da afirmação dos direitos civis ou do Estado de direito, que é uma conquista da humanidade,
- e o liberalismo político identificado com a política dos interesses em lugar da política do bem público,
- que eles vivamente criticam.
Ignatieff volta à crítica da sociedade contemporânea.
Não estaria ela se dando conta que a lógica do gozo, do consumo privado, é vazia? Lasch concorda com veemência.
- “O consumo concebido como cultura e não como simples abundância de bens parece ter como resultado transformar as pessoas em brinquedos passivos de seus fantasmas…”
- O que “torna derrisório” o liberalismo baseado na soberania do consumidor.
Na verdade, assinala Castoriadis,
- o indivíduo só é indivíduo no quadro da sociedade; quando essa sociedade fornece a ele um sentido para sua vida – um sentido que ele necessita.
- “Cada um de nós necessita ser qualquer coisa de substancial”.
Do que se conclui, observa Ignatieff, que a estruturação da identidade de cada indivíduo é uma questão política.
E, continua ele,
- nenhum de nós pode se livrar de seu passado, de sua história, mas será a sociedade contemporânea tão desprovida de sentido?
- Não continua a existir nela a ideia de “caráter”? Ela não nos diz, “eis aqui o tipo de pessoa que nós honramos, que nós respeitamos”?
Sim,
“aquilo que sustenta a imagem do eu é também o fato de que os outros a reconhecem”,responde Castoriadis.
Mas aquilo que nós chamamos “respeito” e Hegel denominava “reconhecimento” perdeu sentido com o colapso do mundo público.
Mas, retruca Ignatieff,
- “até que ponto você nos está empurrando para o pessimismo?”
- Onde está a liberdade do indivíduo? Pergunta que leva Castoriadis a concluir de maneira solene.
A verdadeira liberdade, como a democracia, são conceitos trágicos, porque não há limites externos para ela. Nunca sabemos até onde podemos chegar em termos de liberdade e de democracia.
“Na tragédia grega o herói não morre porque haveria um limite que ele haveria transgredido; esse é o pecado cristão. O herói trágico morre de sua húbris, ele morre por transgredir em um campo onde não havia limites estabelecidos anteriormente”.
Citando por meu turno Aristóteles, não posso deixar de acrescentar que
- a prática da liberdade não conflita com o interesse,
- mas é incompatível com o egoísmo, porque ela só se realiza no espaço público.
Um pouco depois desse debate, a psicanalista e filósofa Maria Rita Kehlem A razão depois da queda, via nascer a pós-modernidade ou a contemporaneidade, e já fazia sua crítica:
“Não ousamos mais dar asas à imaginação, ou seja, ao desejo… a pós-modernidade é o momento em que se decreta a falência das utopias modernas… a ideia do homem como sujeito da história vai sendo abandonada”.
Essa é a contemporaneidade, esse foi o tempo do neoliberalismo.
- Não foi apenas um tempo do liberalismo econômico,
- foi também um tempo de profunda crise do sujeito, foi um momento em que o individualismo se transformou em narcisismo
- e a solidariedade exercida no espaço público com vistas ao futuro cedeu lugar à perda da ideia de tempo e de futuro, de que nos fala agora Joel Birman.
Em seu livro, ele não discute o esvaziamento do espaço público, mas ele está interessado em um problema com ele relacionado. Ele foca sua atenção no mal-estar da contemporaneidade – como esse mal-estar é diferente do mal-estar da modernidade que Freud analisou em O mal-estar da civilização (1930), livro no qual
“sistematizou os impasses do projeto da modernidade, já então indicando como o narcisismo solapava por dentro a máxima ética do Iluminismo, centrada na felicidade, no culto do eu e no prazer”.
Birman vai, portanto, fazer uma análise histórica do sujeito, na linha do próprio Freud, que, como observa o autor,
- jamais acreditou na natureza humana racional e abstrata, e pensou historicamente
- “não obstante a condição pulsional de base” do sujeito.
Joel Birman está interessado nesse sujeito, e para analisar seu mal-estar, ele vai opor três dualidades de conceitos.
O que vemos, na transição da modernidade para a atualidade e a passagem
- do sofrimento à dor,
- do tempo ao espaço,
- e do desamparo ao desalento.
O sujeito moderno, o sujeito de meados do século XX, enfrentava uma infinidade de contradições que o próprio Freud e grandes escritores como Arthur Schnitzler e Robert Musil, e filósofos como Herbert Marcuse e Walter Benjamin, analisaram, mas ele sabia reconhecer o seu tempo histórico ao invés de acreditar
“que tudo se passa no tempo presente, no qual a repetição do mesmo é tão poderosa que não anuncia qualquer possibilidade de ruptura e de descontinuidade”.
Para Joel Birman o mal-estar da contemporaneidade está em primeiro lugar na incapacidade do sujeito de viver o tempo e a mudança que vem com ele.
- Quando ele sonha e se recorda do sonho, ele vive uma narrativa,
- mas hoje, ao invés do sonho, predomina o pesadelo e o pânico,
- que é traumático, e paralisa o sujeito em um espaço sem tempo.
Mas para ele “o mal-estar contemporâneo se caracteriza principalmente como dor, e não como sofrimento”.
A dor é física, é uma materialização sensorial privada, não envolve a alteridade que está presente no sofrimento – um sentimento psíquico.
- Se a dor se mantém apenas como dor, ela é só nossa, e talvez possa ser resolvida pelo analgésico ou pelo medicamento psiquiátrico;
- se logramos transformá-la em sofrimento, isto significa que fazemos parte de um todo social, e que podemos contar com a ajuda e a compreensão do outro e com a psicanálise.
Mas os homens e as mulheres perderam essa capacidade na contemporaneidade.
- Diante da dor, diante do pesadelo e do trauma, ele fica paralisado ao não poder situá-la no tempo e transformá-la em sofrimento compartilhado.
- Ele enfrenta os excessos, as irrupções de suas emoções, mas como elas não podem se expressar em explosões porque a sociedade não as aceita, não lhe resta alternativa senão implodir,
“colocando em questão a ordem da vida, porque os interstícios e as fendas do somático seriam as únicas linhas de fuga disponíveis para a materialização da implosão.”
E assim, além da dor,
- vemos o sujeito mergulhar na hiperatividade,
- vemos a demissão do pensamento e a aceleração do comportamento,
- a ação se tornando um imperativo categórico.
A expressão artística do sujeito contemporâneo aparece de forma exemplar no filme de Stanley Kubrick, De olhos bem fechados, no qual
“toda a narrativa se constrói entre a possibilidade e a impossibilidade da experiência de sonhar”.
De repente,
- diante da mulher que lhe conta um sonho erótico com um marinheiro,
- o marido, a expressão da contemporaneidade bem sucedida e bem comportada que perdeu a capacidade de sonhar e imaginar, que reconhece apenas a aparência dos objetos à sua volta,
- se desconstrói e vive um pesadelo.
Ora, observa Birman, como Freud ensinou, o desejo é o motor da vida, mas “para o sujeito desejar é preciso que possa também fantasmar”, é preciso que saiba usar a imaginação com liberdade – algo que o marido não tem.
Este não é um livro político, mas nesse mundo visto pelo sujeito como continuidade e repetição, nesse mundo no qual o sujeito perdeu a perspectiva do tempo e a capacidade de imaginar e de se comunicar com os outros,
- Birman não pode deixar de se referir ao fim da história de Francis Fukuyama e ao caráter neoliberal dessa visão.
- Porque, afinal, acrescento, essa contemporaneidade a que ele se refere foi o tempo do neoliberalismo,
- foram os 30 anos neoliberais do capitalismo que entraram em colapso com a crise financeira global de 2008.
Para Birman, na contemporaneidade
“o terror de se perder apodera-se do eu… a “despossessão de si” se anuncia assim como problemática crucial do mal-estar da contemporaneidade”.
O sujeito se sente dominado pelo sentimento do vazio.
- Por que?
- Haverá uma razão geral para essa tragédia humana e moral?
Birman não dá uma resposta direta a essa questão. Mas ele cita Lasch, que criticou “a constituição da cultura do narcisismo na atualidade”.
E, afinal, o que é essa cultura, senão a cultura de um individualismo ou de um egoísmo extremado, que impede ao sujeito compartilhar valores e objetivos e dar sentido para sua própria vida?
Conforme termina Birman, confirmando a análise anterior de Lasch, Castoriadis e Ignatieff,
“a solidariedade, como valor que amalgama ainda os laços sociais na modernidade, desapareceu inteiramente do cenário na contemporaneidade”.
Seu resultado, porém, observo,
- não foi apenas trágico para o sujeito; foi também para a sociedade
- que, hoje, vive uma crise profunda, uma crise que não é apenas econômica, mas também cultural,
- que não se revela apenas na estagnação econômica nos países ricos e na redução do crescimento nos países em desenvolvimento,
- mas também na perda de valores e de uma ideia de destino comum.
A mudança tecnológica continua acelerada, mas dado o individualismo exacerbado
- que o neoliberalismo pregava e a teoria econômica neoclássica legitimava como “científico” a partir da redução do sujeito ao homo economicus que sempre maximiza seus interesses,
- o sujeito contemporâneo se tornou desorientado e infeliz.
Entretanto, essa visão do mundo e das coisas só foi plenamente hegemônica nos anos 1990.
Desde o início dos anos 2000 começou a ser contestada, e hoje está mais uma vez claro que uma sociedade presidida pelo utilitarismo e o narcisismo é incompatível com a vida social e a realização humana.
Que a democracia, que foi uma conquista da modernidade,
- não pode ser reduzida a um eventual equilíbrio de interesses conflitantes, ou à cultura do egoísmo,
- porque ela só se realiza quando é o resultado de uma construção social compartilhada e participativa na qual o sujeito busca compatibilizar seus próprios interesses com seu espírito republicano
- que luta por um interesse público que ele reconhece como existente e legítimo.
Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/614528-a-cultura-do-egoismo
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