Suas pesquisas giram em torno da problematização da sociedade e natureza, produção e reprodução, economia e política. Formada com JürgenHabermas, coloca em questão o “público” e realiza diagnósticos sobre as intersecções entre as formasde produção e as de organizaçãosocial.
A entrevista é de FlorenciaAngilletta, publicada por Le Monde Diplomatique e reproduzida por Rebelión, 27-09-2021. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Com a pandemia, ocorre certo paradoxo entre a igualdade (todas as pessoas são vulneráveis ao vírus) e a diferença (as pessoas podem se proteger de acordo com o capital que dispõem), atravessada pela gestão estatal que oscila entre a volta do Estado (como marco normativo e institucional) e a crise do Estado (os Estados estão limitados pela distribuição geopolítica das vacinas).
De que modo é possível continuar pensando sobre a desigualdade estrutural e a intervenção estatal?
Nancy Fraser / New School
É uma excelente pergunta e começarei minha resposta dizendo que vejo a Covid-19 como uma tempestade perfeita de irracionalidade e injustiça capitalista.
A pandemia é o ponto no qual convergem todas as falhas e contradições do sistema, incluídas as que você menciona. Muitas vezes se diz, e com razão, que
- o vírus serviu como diagnóstico perverso,
- ao iluminar todas as lacunas de nossa sociedade.
Mas não ouvimos falar o suficiente
- acerca do sistema social que gera essas lacunas, ainda que seja o mesmo sistema que nos trouxe o vírus, em primeiro lugar,
- e que está bloqueando nossos esforços para enfrentá-lo.
Sendo assim, quero insistir nesse ponto: o que a pandemia diagnostica, na realidade, é a disfuncionalidade profundamente arraigada do capitalismo.
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Vejo a Covid-19 como uma tempestade perfeita de irracionalidade e injustiça capitalista. A pandemia é o ponto no qual convergem todas as falhas e contradições do sistema – Nancy Fraser – Tweet
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Para ver o motivo, consideremos de onde veio o vírus.
Ocorre que o SARS–CoV–2, há muito tempo, estava abrigado em cavernas remotas, sem efeitos nocivos para o ser humano. No entanto, recentemente, o vírus passou para uma espécie intermediária e depois para nós. Então,
- o que causou esta “transferência zoonótica”?
- O que aconteceu para que os morcegos entrem em contato com a espécie intermediária e depois conosco?
Duas coisas, ambas resultado direto do capitalismo:
- o aquecimentoglobal, em primeiro lugar,
- e o desmatamento tropical.
Juntos, esses dois processos forçaram inúmeros organismos a sair de seus habitats naturais e a entrar em outros novos, onde começaram a interagir com espécies que nunca antes tinham encontrado, incluindo algumas que estão em contato conosco.
- O resultado foi uma série de epidemias virais entre os humanos, não “só” Covid–19, mas também AIDS, Ebola, SARS e MERS.
- Podemos estar certos de que virão mais, graças à persistência das mudançasclimáticas e o desmatamento, que são impelidos implacavelmente pelo “desenvolvimento” capitalista.
De fato, o sistema capitalista está desenhado para destruir o planeta.
- Incentiva as empresas a que se apropriem da riqueza biofísica da forma mais rápida e barata possível,
- ao mesmo tempo em que as exime da responsabilidade de reparar o que danificam e repor o que consomem.
Empenhadas em aumentar suas ações e lucros,
- dizimam as matas tropicais, bombardeiam a atmosfera com gases do efeito estufa
- e desencadeiam uma cascata crescente de pragas letais.
Em resumo, é o capitalismo que gerou a pandemia, e nos trará muitas outras, a menos que o detenhamos.
Agora, vejamos o aspecto que você mencionou, ou seja, o Estado.
- O que se joga aí é o aspecto político da crise, que convergiu com o aspecto ecológico de um modo que exacerbou ambos e nos colocou em perigo.
- É verdade, é claro, que a pandemia seria horrível para os seres humanos de qualquer modo.
- No entanto, foi muito pior devido os 40 anos de financeirização neoliberal que afetaram as capacidades políticas que, de outro modo, teríamos conseguido utilizar para controlar a Covid.
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Um sistema social que submete os assuntos da vida e a morte à “lei do valor” estava estruturalmente preparado, desde o início, para abandonar milhões de pessoas à sua sorte diante da Covid-19 – Nancy Fraser – Tweet
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Durante esse período, “os mercados” exigiram e receberam investimento estatal em massa da privatização da infraestrutura pública.
Isso é verdade para a infraestrutura em geral, e para a infraestrutura de saúde pública em particular.
Salvo algumas exceções,
- os Estados reduziram as reservas de equipes para salvar vidas,
- destruíram as capacidades de diagnóstico
- e reduziram as capacidades de coordenação e tratamento.
E o que acompanhou o desinvestimento estatal foi a privatização.
Além disso, uma vez destruídas as infraestruturas públicas, os governantes transferiram funções sanitárias vitais para provedores e seguradoras, empresas farmacêuticas e fabricantes com fins lucrativos.
Essas empresas controlam parte dessas capacidades, incluindo
- a mão de obra e as matérias-primas,
- a maquinaria e as instalações de produção,
- as cadeias de fornecimento e a propriedade intelectual,
- as instituições de pesquisa e os profissionais.
E centrados somente em seus lucros e no preço de suas ações, importam-se muito pouco com o interesse público.
Os resultados são trágicos, mas não surpreendentes.
- Um sistema social que submete os assuntos da vida e a morte à “lei do valor”
- estava estruturalmente preparado, desde o início, para abandonar milhões de pessoas à sua sorte diante da Covid-19.
Você também mencionou a desigualdade que ficou muito evidente sob as condições da pandemia. Um dos aspectos que ficou exposto é o racismo estrutural, que impregna todos os aspectos da crise atual.
Em nível global,
- impacta na vertente ecológica,
- já que em grande medida o capital sacia sua sede de “natureza barata”
- retirando a terra, a energia e a riqueza mineral das populações racializadas, privadas de proteção política e de direitos acionáveis.
Desproporcionalmente vulneráveis aos resíduos tóxicos, às “catástrofes naturais” e aos múltiplos impactos letais do aquecimento global, agora, estão no fim da fila da vacinação.
Enquanto isso, em nível nacional, durante muito tempo
- foi negado às comunidades migrantes e BIPOC[em inglês, negras, indígenas e de cor] o acesso às condições que promovem a saúde:
- acesso a um atendimento médico de alta qualidade, água limpa, alimentos nutritivos, condições de trabalho e de vida seguras.
Não causa estranhamento, portanto, que seus membros se infectem e morram de forma desproporcional por causa da Covid.
As razões não são misteriosas:
- pobreza e atendimento à saúde inferior;
- condições de saúde preexistentes relacionadas ao estresse,
- desnutrição e exposição a tóxicos;
- sobrerrepresentação em trabalhos na linha de frente que não podem ser realizados de forma remota;
- falta de recursos que permitam que rejeitem trabalhos inseguros e de direitos trabalhistas que permitam que tragam proteções;
- moradias que não permitem o distanciamento social e facilitam a transmissão;
- acesso reduzido à vacina.
Em conjunto, essas condições ampliam o significado do slogan BlackLivesMatter (Vidas Negras Importam), fazendo sinergia com sua referência original à violência policial e contribuindo para alimentar os protestos atuais.
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A pandemia evidencia outra das principais contradições da sociedade capitalista: a incapacidade do mercado da força de trabalho em calcular com precisão o valor real do trabalho – Nancy Fraser – Tweet
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A cor, além disso, está profundamente entrelaçada com a classe, no sistema mundial capitalista em geral e no período atual em particular.
De fato, os dois são inseparáveis, como demonstra a categoria “trabalhador essencial”. Se deixarmos de lado profissões da medicina,
essa denominação abarca
- trabalhadores agrícolas migrantes,
- trabalhadores imigrantes dos matadouros e do empacotamento de carne,
- distribuidores dos depósitos da Amazon,
- motoristas de UPS (um sistema de envio de pacotes),
- auxiliares das residências de idosos,
- limpadores dos hospitais,
- repositores e caixas dos supermercados,
- aqueles que entregam comida para levar.
Especialmente perigosos em tempos de Covid, esses trabalhos
- são em sua maioria mal remunerados,
- não sindicalizados e precários,
- desprovidos de auxílios e proteções trabalhistas,
- sujeitos a uma supervisão intrusiva e aceleração implacável.
Embora exista uma diversidade de pessoas, são ocupados de forma desproporcional por mulheres e pessoas afro-americanas.
Em conjunto, esses trabalhos, e aqueles que o desempenham, representam o rosto da classe trabalhadora no capitalismofinanceirizado.
Não se personifica mais
- na figura do homem branco mineiro, operário da fábrica e trabalhador da construção,
- mas, ao contrário, essa classe também inclui os trabalhadores e as trabalhadoras de serviços com salários baixos e a grande maioria de cuidadores/as.
Pagos abaixo de seus custos de reprodução, quando são pagos, são expropriados/as e explorados/as.
A Covid trouxe à luz também esse sujo segredo.
Ao justapor o caráter essencial do trabalho dessa classe com a subvalorização sistemática que o capital faz dele, a pandemia evidencia outra das principais contradições da sociedade capitalista:
a incapacidade do mercado da força de trabalho em calcular com precisão o valor real do trabalho.
Em geral, a Covid é uma tempestade perfeita de irracionalidade e injustiça capitalista.
Ao aumentar os defeitos inerentes do sistema até o ponto de ruptura,
- faz brilhar um raio de luz
- penetrante sobre todas as contradições estruturais de nossa sociedade.
Tirando-as das sombras e expondo-as à luz, a pandemia revela o impulso inerente do capital
- em canibalizar a natureza até a beira da conflagração planetária,
- desviar nossas capacidades dos trabalhos verdadeiramente essenciais da reprodução social,
- eviscerar o poder público a ponto de não poder resolver os problemas gerados pelo sistema,
- alimentar-se da riqueza e a saúde cada vez piores das pessoas racializadas,
- não só explorar, mas também expropriar, a classe trabalhadora.
Não poderíamos pedir uma lição melhor de teoria social.
Entre as diferentes medidas de isolamento anunciadas pelo governo na Argentina, um das que mais gerou expectativa foi a relacionada às trabalhadoras em casas de família, se poderiam ou não se deslocar até seus locais de trabalho.
Como essa crise e essa pandemia impactam na revalorização do que você chamou de “reprodução social” e o problema das “cadeias globais de cuidado”, junto com Cinzia Arruzza e Tithi Bhattacharya, em ‘Feminismo para os 99%: um manifesto’?
Assim como as outras dimensões da crise,
- o aspecto de gênero também tem suas raízes no capitalismo,
- que subvaloriza cronicamente as tarefas de cuidado
- e fomenta as crises de reprodução social.
Hoje, vemos isso claramente. O mesmo regime neoliberal
- que se despojou da infraestrutura dos cuidados públicos,
- também quebrou os sindicatos e reduziu os salários,
- forçando a aumentar as horas de trabalho remunerado por lar,
- inclusive de cuidadores/as principais.
Desse modo, descarregou o trabalho de cuidados nas famílias e nas comunidades justamente no momento em que também estava requisitando as energias sociais que necessitávamos para realizar esse trabalho. O efeito foi uma crise aguda de cuidados, que surgiu inclusive antes da pandemia e que se intensificou.
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A pandemia deixou claro como é importante o trabalho de cuidados, o quanto precisamos dele e como é irracional viver em uma sociedade que não o valoriza – Nancy Fraser – Tweet
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Como sabemos,
- a Covid transferiu novas e importantes tarefas de cuidado para as famílias e comunidades,
- já que o cuidado das crianças e a escolarização foi repassado para os lares das pessoas, durante o confinamento.
A carga recaiu principalmente sobre as mulheres, que continuam realizando a maior parte das tarefas de cuidado não remuneradas.
Não causa estranhamento, portanto,
- que muitas mulheres empregadas tenham deixado o seu emprego para cuidar de seus filhos/as e outros familiares,
- enquanto muitas outras foram demitidas por seus empregadores.
Os dois grupos enfrentam importantes perdas de posição e de salário, caso se reincorporem ao trabalho.
Um terceiro grupo,
- que tem o privilégio de conservar o seu emprego e trabalhar de modo remoto,
- ao mesmo tempo em que realiza tarefas de cuidado, inclusive de crianças confinadas em casa,
- levou o multitasking (multi-tarefas – NdR) a novos níveis de loucura.
Um quarto grupo, que inclui tanto mulheres como homens,
- integra com honra os “trabalhadores essenciais”,
- ameaça de infecção, junto com o medo de levá-la para casa,
- para produzir e entregar as coisas que permitem que outros/as se refugiem em seu local.
Está claro, portanto, que as tarefas de cuidado
- se cruzam com a organização do mercado de trabalho,
- a economia política,
- o cuidado social e os auxílios do Estado.
O problema principal é que a sociedade capitalista nutre uma profunda tendência
- a se aproveitar da gratuidade do trabalho de cuidados,
- canibalizar as capacidades de cuidados e o preenchimento das mesmas.
Isso se aplica ao capitalismo em geral. No entanto, o atual capitalismo neoliberal é especialmente predatório nesse aspecto. E a pandemia deixou claro
- como é importante o trabalho de cuidados,
- o quanto precisamos dele
- e como é irracional viver em uma sociedade que não o valoriza.
Dois extremos a ser considerados em torno da política e a economia são a dívida e os subsídios. A Argentina, por exemplo, está negociando suas capacidades de pagamento. Por outro lado, neste ano, vimos os anúncios históricos de Joe Biden sobre os subsídios.
Quais são as possibilidades desse capitalismo entre o equilíbrio macroeconômico e a necessidade da economia injetada no bolso?
A dívida tem um papel especial no capitalismo neoliberal. Nas formas anteriores, as finanças eram um ramo da economia entre outros. Apoiavam o ramo produtivo, fornecendo créditos que permitiam a inovação e o crescimento. Mas esse não é o caso no neoliberalismo.
Agora, as finanças não são simplesmente um ramo discreto da economia capitalista. Ao contrário, seus tentáculos se estendem por todas as partes da economia. Este é um exemplo disso:
os fabricantes de automóveis, hoje em dia,
- ganham menos produzindo e vendendo carros
- do que oferecendo empréstimos aos compradores para que comprem carros.
Em outras palavras, estão no negócio do crédito, que é um negócio mais rentável que o da produção.
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Pais e mães não podem mais esperar que seus filhos vivam melhor que eles. Ao contrário, em muitos casos, estarão piores. A dívida é uma grande parte dessa história – Nancy Fraser – Tweet
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A dívida circula por todo o sistemaeconômico, não só através dos bancos, mas também das empresas, Estados, lares e instituições financeiras mundiais.
- Falamos de “dívida soberana”, mas é irônico
- porque são os detentores dos títulos que determinam o que o Estado tem que fazer para que o crédito continue fluindo.
Vimos muitos desses exemplos na crise financeira de 2008,
- quando a União Europeia soltou a mão da Grécia
- para agradar os credores.
Essa forma de capitalismo mudou dramaticamente o equilíbrio de poder entre Estados e investidores, corporações e mercados financeiros.
Ao mesmo tempo, houve um grande aumento da dívida privada.
- As famílias trabalhadoras não ganham o suficiente para suportar seus gastos de manutenção por meio de seus salários.
- Dependem de cartões de crédito, de dívidas estudantis, hipotecas e créditos para o automóvel.
Este é outro traço definidor do capitalismo atual,
- que não só explora as classes trabalhadoras,
- mas simultaneamente as expropria através do endividamento.
Pais e mães não podem mais esperar que seus filhos vivam melhor que eles. Ao contrário, em muitos casos, estarão piores. A dívida é uma grande parte dessa história.
Você analisou o capitalismo não apenas como um sistema econômico, mas a partir do que chamou de “visão expandida do capitalismo”. As crises que vivemos atualmente não são apenas parte de um sistema econômico.
Como, então, construir horizontes emancipadores?
- O capitalismo não é apenas um sistema econômico,
- é uma forma de organizar a relação do sistema econômico com outras esferas da sociedade nas quais a economia se apoia.
Organiza a relação da economia com a natureza, com a vida familiar e a reprodução social, e com a esfera política.
Todos esses elementos são suportes necessários ou condições de fundo para uma economia capitalista.
Não pode existir
- sem o trabalho não remunerado que sustenta os/as trabalhadores/as,
- os processos naturais que sustentam os sistemas ecológicos e uma grande variedade de bens públicos,
- incluindo os marcos legais, as forças repressivas, a oferta de dinheiro, a infraestrutura e as comunicações.
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Não podemos entender o que está acontecendo, a menos que adotemos uma visão ampliada do capitalismo, que problematize a relação da economia com suas condições de fundo não econômicas – Nancy Fraser – Tweet
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No entanto, a sociedade capitalista institui uma relação perversamente contraditória entre sua economia e esses apoios necessários.
- Incentiva os capitalistas a canibalizar as próprias condições de fundo
- das quais dependem para devorar nossas capacidades políticas, ecológicas e assistenciais.
Por isso, nossa crise atual é sobre tudo.
- Não é “apenas”uma crise econômica.
- Também é uma criseecológica, política e de reprodução social.
Não podemos entender o que está acontecendo,
- a menos que adotemos uma visão ampliada do capitalismo,
- que problematize a relação da economia com suas condições de fundo não econômicas.
A visão tradicional do capitalismo como sistema econômico não pode esclarecer a situação atual.
Em relação à emancipação, devemos ampliar nossa ideia do que conta como luta anticapitalista.
- Não são apenas as lutas nas fábricas entre os/as trabalhadores/as e patrões/as, ainda que sejam muito importantes.
- São também as lutas pela educação, moradia digna e saúde pública.
Essas
- são lutas sobre a reprodução social, que envolvem o setor público e o privado.
- São lutas sobre a disfunção capitalista, por um novo sistema social,
que repensaria
- toda a relação entre a sociedade humana e a natureza não humana,
- entre a produção e a reprodução,
- entre a economia e a política.
Em uma de suas últimas obras, dedicou-se a uma análise das “fronteiras”, e uma das fronteiras em seu trabalho se refere à existente entre os feminismos e a política.
O que ocorre nessa “fronteira”?
Desenvolvi essa ideia sobre a luta de fronteiras para tentar me conectar com essa visão ampliada do capitalismo.
Existem lutas não apenas dentro do setor econômico, entre o trabalho e o capital.
Também existem lutas de fronteiras
- entre o sistema econômico e o Estado, e não só o Estado,
- mas também sobre capacidades estatais e instituições públicas.
Algumas dessas lutas ocorrem em diferentes níveis. O caso da produção e a reprodução é de especial interesse para o feminismo porque tem a ver com fronteiras de gênero.
Historicamente, a reprodução era uma esfera feminina e a produção uma esfera masculina.
Hoje em dia,
- isso não está delimitado de modo tão claro
- e como as mulheres entraram em massa no mercado de trabalho remunerado,
- possuem duplo turno de trabalho.
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O caso da produção e a reprodução é de especial interesse para o feminismo porque tem a ver com fronteiras de gênero – Nancy Fraser – Tweet
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Por que as mulheres, hoje em dia, em muitos países, estão à frente nesta luta de fronteiras sobre a reprodução social?
- As mulheres que ensinam não lutam apenas por melhores salários, mais aulas e mais recursos para as escolas.
- Estão se alinhando com os pais e mães que têm trabalhos em outros setores e que querem uma educação melhor para seus filhos/as.
- As mulheres que trabalham nesses setores, diferente dos trabalhadores industriais que às vezes lutam apenas por melhores salários, lutam pela qualidade do serviço.
As enfermeiras são outro exemplo:
- estiveram lutando não apenas por melhores salários,
- mas também pela quantidade de pacientes que podem tratar,
- para oferecer melhores condições.
Esses são casos interessantes, porque não são lutas apenas pelas condições de trabalho, mas também pelos recursos e pela qualidade dos serviços. Envolve o Estado e a reprodução social, a esfera econômica e a social. Tudo está relacionado. As lutas pela reprodução social são também as lutas trabalhistas.
Grande parte da militância trabalhista não vem dos trabalhadores industriais, mas de quem faz o trabalho de reprodução social.
Essa é uma grande mudança na luta de classes, no que significa a luta de classes.
Todas essas mudanças estão transformando a classe trabalhadora,
- que não é mais composta apenas pelos/as trabalhadores/as das fábricas,
- mas também por aqueles/as que trabalham em serviços, reprodução social, nas comunidades ou lares e que não recebem uma remuneração.
Essas pessoas também fazem parte da classe trabalhadora. Não sofrem apenas a exploração, mas também a expropriação por meio da dívida. O problema da dívida também faz parte da luta de classes.
Novamente, quando temos essa visão ampliada do capitalismo, é preciso levar em conta as formas de opressão, exploração e expropriação.
- Tem-se um panorama mais amplo sobre quais lutas são potencialmente ou diretamente anticapitalistas.
- E, depois, tem-se um panorama ainda maior de quais seriam as alianças possíveis.
Se essa forma de capitalismo é a raiz de todas as crises, irracionalidades e injustiças,
- então, tem-se, ao menos potencialmente, a possibilidade de ter pessoas que estão situadas em diferentes lugares do sistema
- e, portanto, com diferentes preocupações existenciais pelas quais lutar.
Isso significa que continua existindo possiblidades de que essas pessoas vejam as relações entre si, nesse sistema predatório.
Você escreveu sobre onde o neoliberalismo encontrou seu calvinismo, seu carisma, e a respeito dos vínculos entre neoliberalismo e progressismo.
Quais são os desafios, em 2021, para continuar lendo a partir de classe e identidade, “redistribuição” e “reconhecimento”, pilares de seu trabalho?
Tenho um diagnóstico completo, uma espécie de diagnóstico ao modo de Gramsci,
- de como uma filosofia econômica tão daninha para tanta gente
- conseguiu suficiente apoio político e legitimidades para se tornar a força dominante e hegemônica para se apoderar dos governos em todo o mundo.
Minha ideia é que isso nunca poderia ter acontecido, se a única história estimada tivesse sido o projeto econômico, já que é prejudicial para os pobres, a classe trabalhadora e a classe média. Nunca poderia ter tido êxito somente a partir de sua filosofia econômica. Precisavam de algo a mais.
E isso
- é o que Luc Boltanski e Ève Chiapello chamaram de “novo espírito do capitalismo”,
- e graças ao qual o neoliberalismoconseguiu cooptar, em minha opinião, um setor importante dos novos movimentos sociais que têm carisma e legitimidade:
o feminismo, os direitos LGBTQ, os direitos civis, movimentos antirracistas e, ultimamente, também os movimentos ambientalistas.
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O neoliberalismo como filosofia hegemônica está morto: segue no poder, mas não tem mais credibilidade. Estamos nesse “interregno” de Gramsci, no qual aparecem todos os tipos de sintomas mórbidos – Nancy Fraser – Tweet
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O que o neoliberalismo fez
- foi sacudir os setores liberais convencionais dominantes, que nunca foram muito críticos, nem anticapitalistas,
- e deu um tapinha nas costas deles, fazendo-os sentir que tinham poder.
Temos
- o feminismo corporativo liberal, como por exemplo HillaryClinton,
- que fez tudo o que Wall Street queria
- e também promoveu um tipo de feminismo específico,
- concentrado em eliminar barreiras discriminatórias para que algumas mulheres talentosas ascendessem na hierarquia corporativa.
Essa visão feminista não está relacionada a uma igualdade social real, está relacionada à meritocracia.
Black faces in high places, um livro crítico sobre o racismo, também ressalta esses conflitos a partir da presidência de Obama. É a velha história sobre como o neoliberalismo obtém o seu carisma.
- Chamo essa aliança de “neoliberalismo progressista”,
- porque é muito diferente do que acontece com Bolsonaro, que é um “neoliberal reacionário”.
Depois disso, houve alguns eventos importantes: 2016 foi um momento crucial nos Estados Unidos e, provavelmente, afetou o mundo todo.
Naquele momento,
- Bernie Sanders enfrentou Hillary Clinton pela indicação democrata à presidência,
- e do outro lado estava Trump, que não era o típico republicano neoliberal.
Havia dois desafios para o neoliberalismo, da direita e a esquerda.
Por exemplo,
- alguns trabalhadores brancos que votaram em Sandersnas primárias,
- não votaram em Hillary Clinton nas eleições, mas, sim, em Trump.
Houve uma rejeição popular contra o neoliberalismo, que é o neoliberalismo progressista. A verdade é que a rejeição mais forte partiu da direita. A esquerda também se manifestou, mas a direita a conseguiu capitalizar melhor.
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Temos margem de ação, se não nos conformamos apenas com a política de reconhecimento. É preciso deixar de lado a cultura do cancelamento e as microagressões. Servem como proteína para a direita – Nancy Fraser – Tweet
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Agora, temos a pandemia e, como disse no início, é uma grande lição de teoria social.
A pandemia nos mostra que o livre mercado não pode fazer o que é necessário para garantir que vivamos de maneira decente.
Acredito que o neoliberalismo como filosofia hegemônica está morto: segue no poder, mas não tem mais credibilidade. Estamos nesse “interregno” de Gramsci, no qual aparecem todos os tipos de sintomas mórbidos.
Joe Biden não é um neoliberal progressista. A ação transcorre no Partido Democrata, entre a velha facção Clinton e a facção Sanders.
- Sanders tem muito mais controle do que antes, embora não possua todo o controle. Essa é uma forma de ver o “interregno”.
- As contradições são graves, mas é um momento importante e há oportunidades reais para a esquerda.
- Não acredito que o fascismo esteja ao virar da esquina e que seja necessário correr para pedir proteção ao liberalismo.
Se chegarmos a esse ponto, lutarei junto com os liberais contra o fascismo, mas isso depende do momento e agora não é o momento. O movimento de Sanders deveria construir um novo bloco anti-hegemônico com todos os setores anticapitalistas que já mencionamos.
Penso que temos margem de ação, se não nos conformamos apenas com a política de reconhecimento. É preciso deixar de lado a cultura do cancelamento e as microagressões. Servem como proteína para a direita.
É preciso se concentrar na estrutura, nas instituições, nas demandas e lutas que podem realmente melhorar a vida material da classetrabalhadora. Existe uma oportunidade aí.
.
Florencia Angilletta
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