1. O ser humano tem como uma das suas características ser laborans (trabalhador).
Não apenas para ganhar a vida
– uma expressão extraordinária, embora dura:
- a vida foi-nos dada e, depois, é preciso ganhá-la,
- e uma das coisas que me têm sido ensinadas pela experiência é que quem nada tem de fazer para ganhar a vida, trabalhando, porque tudo lhe é oferecido,
- nunca atinge uma adultidade madura –,
mas também para se realizar autenticamente em humanidade.
De facto, é transformando o mundo que a pessoa se transforma e faz. Isso é dito no étimo de duas palavras:
- a palavra trabalho vem do latim, tripalium, um instrumento de tortura (trabalhar não é duro?),
- mas também dizemos de alguém que realizou uma obra e que se vai publicar as obras de alguém (do latim, opera) – em inglês, trabalhar diz-se to work, e, em alemão, Werk é uma obra, sendo o seu étimo érgon, em grego.
Ai de quem, à sua maneira, não realiza uma obra, a obra primeira que é a sua própria existência autêntica!
- Fazendo o que fazemos, o que é que andamos no mundo a fazer?
- A fazer-nos, e, no final, seria magnífico que o resultado fosse uma obra de arte.
Logo no princípio, Deus disse que o Homem tem de trabalhar.
É próprio do Homem trabalhar, pois ele é constitutivamente relação com o mundo.
- Esta relação com o mundo é mais do que uma relação de trabalho para a produção de bens em ordem à subsistência:
- o trabalho é também realização própria, social e histórica:
- construindo o mundo, a Humanidade ergue a sua história de fazer-se.
Jesus também trabalhou, e trabalhou no duro. Normalmente, diz-se que era carpinteiro, mas o grego – os Evangelhos foram escritos em grego – diz que era um téktôn(donde vem arquitecto), isto é, o que antigamente se chamava um “faz-tudo”: era capaz de ajudar a erguer uma casa e preparar instrumentos agrícolas.
Foi nessa relação dura com o trabalho, e foi a trabalhar
- que passou a maior parte da sua vida,
- que percebeu melhor a vida e, por exemplo, as relações entre quem tem muito dinheiro e os outros…
Estou convencido de que,
- se o clero tivesse mais experiência do trabalho duro,
- haveria outra compreensão da Igreja na sua missão no mundo…
A vida é exaltante, mas também é dura, esmagadora por vezes. Isso diz-se nos rituais dos mortos, quando se reza:
“Dai-lhe, Senhor, o eterno descanso… Descansa em paz. Amém.”
” Tantas são as canseiras da vida!…
2. Mas Deus também estabeleceu um dia de descanso e Jesus, diz o Evangelho, também descansou.
É necessário sublinhar que
- a Bíblia faz questão de dizer que Deus deu o mandamento de um dia feriado semanal, santo, sem trabalho,
- para que o Homem fizesse a experiência de que não é uma besta de carga, mas um ser festivo.
Tem de trabalhar – e duro -, mas não é besta de carga. E aí está o Domingo ou o luxo de um feriado aqui e ali. Aí estão as férias.
E as palavras não são arbitrárias.
- A palavra latina feria, no plural feriae, tinha o sentido de “descanso, repouso, paz, dias de festa”.
- No século III, a Igreja assumiu os dias da semana como dias de “comemoração festiva”,
- enumerando-os como feria prima, feria secunda, tertia, quarta, quinta, sexta, ou, invertendo a ordem das palavras: prima feria, secunda feria, tertia feria, quarta feria, quinta feria, sexta feria.
Daí,
- ao contrário de outras línguas, como o espanhol, o italiano, o francês, etc., que adoptaram a classificação romana baseada na divinização de um planeta: Lunes, Martes, Lundi, Mardi, etc.,
- o português ter seguido a designação eclesiástica: segunda-feira, terça-feira, quarta-feira, etc.
Que feira enquanto mercado esteja igualmente associada a feria deriva do facto de os comerciantes aproveitarem os dias festivos para vender as suas mercadorias.
O importante é sublinhar, até do ponto de vista histórico e etimológico, o carácter festivo associado às férias.
- Assim, em espanhol férias diz-se vacaciones e em francês vacances.
- Ora, vacaciones e vacances têm o seu étimo no latim vacatio, com o significado de isenção, dispensa de serviço.
- Os ingleses em férias dizem que estão on holidays, e isso quer dizer em dias santos.
- Os alemães, esses têm Ferien ou Urlaub. Ora, a raiz de Urlaub é Erlaubnis, com o sentido de dias livres de serviço e trabalho.
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Se pensarmos bem, as férias não têm como finalidade serem apenas um intervalo no trabalho, para repor as forças em ordem a trabalhar outra vez e mais. As férias têm o seu fim em si mesmas: a experiência de que o ser humano é um ser festivo.
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- É preciso apanhar sol na praia, no campo, na montanha, ler a grande literatura, ouvir música, que nos remete para origens imemoriais e para a transcendência utópica toda.
- É preciso reaprender a ver o Sol a nascer e a pôr-se, e a exaltar-se com a Lua enorme – cheia – ou pequenina que nem um fio, e com o alfobre das estrelas: isso que na cidade não se vê.
- É preciso voltar às alegrias simples: contemplar uma simples folha de erva, acolher o perfume de uma “rosa sem porquê”, como dizia Angelus Silesius, o inútil do ponto de vista da produção – “o fascinante esplendor do inútil”, escreveu George Steiner -, exaltar-se com o enigma de um rosto, o mistério do ser e de ser.
- É preciso ter tempo para a Família, para os amigos, para ouvir o Silêncio onde se acendem as palavras que iluminam.
- É preciso ter tempo para a beleza: não é a beleza que redime o mundo, como disse Dostoiévski?
Tempo para o melhor: ouvir Deus, dialogar com o Infinito. Rezar.
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Anselmo Borges
Padre e professor de Teologia.
Escreve de acordo com a antiga ortografia
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